A Mãezé apertou o cerco e eu acabei por me render. Já antes tinha insistido comigo para ir, que era tão bom, que eu ia adorar, que ela gostou tanto e se lembrou tanto de mim, que a comida era toda vegetariana, que as pessoas isto e a filosofia aquilo. Mas eu não fui. Não conseguia ver-me lá. Não conseguia ver-me em mais lado nenhum para além do fosso que cavei.
Há uns meses começou "temos retiro em Outubro" e, com a proximidade da data, foi repetindo com falinhas mansas "não te esqueças que no fim-de-semana de 9, 10 e 11 é o retiro", sem admitir um não como resposta mas ao mesmo tempo sabendo que a mal ninguém me leva a lado nenhum. Amansou como só ela (e tu também...) sabe amansar o bicho ferido que eu tinha aqui dentro. A minha mãe é pequenina e eu sou grande, mas não há colo como o dela.
Fomos. O retiro era um retiro de silêncio, num espaço chamado 4Ventos, em Mafra. Era isto que eu sabia, e pouco mais. Que estaríamos caladas e que haveria meditação. Tenho aprendido que quando a expectativa é zero, a satisfação é garantida. Tudo o que se seguiu veio como uma bênção.
Se falámos? Sim. Se falámos muito? Não.
Falávamos quando nos era permitido. Para partilhar o que sentíamos após cada meditação, para colocar alguma questão, para fazer mantras, para cantar, para agradecer às cozinheiras pela comida e para rir. Rir muito. De resto, o silêncio. O poder do silêncio. Silêncio entre desconhecidos. Sorrisos, gestos, desviares de olhos, tristezas, alegrias, dúvidas, inseguranças e muitas personalidades a virem ao de cima. Em silêncio, pareceu-me que éramos todos transparentes. Para o bem e para o mal. Nunca pensei.
Acordar num sítio como aquela casa, rodeada de pessoas de todas as idades, cores e feitios, e todas, todas em silêncio... Lavar os dentes ao lado dum senhor que faz a barba. Fazer fila para a casa de banho. Cruzar-me com senhoras enroladas na toalha. Tudo em silêncio. Saber que não teria de dizer bom dia sequer. Não esperar nada. Ninguém me dirigiria a palavra. Só olhares e sorrisos cúmplices. Não haveria desbloqueadores de conversa, não haveria constrangimentos.
As refeições em silêncio. Também era um momento de meditação, o de comer. Observar a comida, primeiro no prato e depois na minha boca e depois no meu corpo. Surpreendente. Ficava cheia em menos de nada. Pensei que seria super constrangedor ouvir só talheres e um ou outro alarve a mastigar de boca aberta. Ahahaha! Nada. Não me lembro sequer de ouvir talheres, nem de observar os outros a comer. Quando vi que havia papa de aveia ao pequeno almoço fui para o céu com os pequenos póneis. E bebi imenso café. Uma delícia, Didi.
Das muitas actividades que fizemos e meditações que experimentámos (umas mais e outras menos bem conseguidas - houve momentos em que simplesmente nem consegui manter os olhos fechados, mas tudo bem), houve uma coisa que me marcou. A orientadora estava a falar. Nós ficávamos confortavelmente sentados cada um no seu colchão, com almofadas e mantas. Chá ou água e folhas e caneta para apontamentos. A sala era linda. Chão e tecto em madeira, luzinhas, muitas janelas e uma lareira com recuperador de calor. Mas não estava acesa.
De repente ouve-se um barulhinho e um movimento estranho dentro da lareira. Tinha acabado de descer pela chaminé e aterrado ali dentro um passarinho. Nesse momento quebrou-se o silêncio. Primeiro houve quem apontasse, mas depois falou-se mesmo. "Um pássaro, está um pássaro dentro da lareira!" O tubo da chaminé era tão longo. Que viagem horrível o bicho deve ter feito até finalmente parar e ver novamente luz.
Ninguém se levantou tão rapidamente quanto eu. Foi-me impossível não me identificar imediatamente com aquele pássaro. O susto e o medo de atravessar um túnel escuro, a queda no desconhecido, as asas que não lhe valiam de nada. A prisão em que ficou, o ecrã através do qual via a vida que teve e de que gostava, inacessível. E os sons e a luz toldados. E nenhuma possibilidade de se ver dali para fora. Não sem ajuda.
Quando me aproximei do vidro ele começou a esvoaçar. Via-nos e via a sala e as janelas mas não via saída. Alguém disse para simplesmente abrir a porta da lareira que ele daria logo com a janela aberta. Esta gente não tem gatos siameses, pensei. Quantas vezes já vi passarinhos tão aterrorizados de se verem dentro duma casa que a última coisa que conseguem fazer é rumar à janela aberta...
Abri a porta só um bocadinho. Ele entrou em pânico quando viu a minha mão a aproximar-se para o apanhar. A multidão que deveria meditar em silêncio sofria e gemia e suspirava. Ele resistiu até que o entalei e o agarrei pelas patinhas. Depois veio o melhor. Fui lá fora. A paisagem de Mafra era o azul do amanhecer e as árvores. Mais nada. Ar puro e céu aberto. Silêncio.
Abri as mãos e ele nem hesitou. Voou até o perder de vista.
Obrigada, Mamã.
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12 comentários:
que bom!
=)
bem nat,
deve ter sido uma experiencia e tanto, fiquei com vontade de vivenciar isso tudo...
Satsang
Fizeste-me ficar com a lagrimita no olho... quem me dera ter uma mamã assim que me levasse para esse tipo de retiros!
Para a próxima pergunta à tua mãe se não me quer adoptar por uns tempos :o)
É bom ler e sentir como estás.
Beijocas grandes :o*
Pronto, caiu-me uma lagriminha. Lindo. Oh nat, ainda bem que estás de novo livre.
Já te tinha dito... o quanto me fazes sorrir e/ou rir desalmadamente com as tuas experiências ?! Acho que tens de acrescentar ao teu perfil... alma de poeta :)
fico feliz por te estares a sentir bem :)
eu já tenho o meu atestado de maluca e os meus quimicos, tinhas razão a médica concordou q precisava de me afastar daquele ambiente.
beijoca
:)
:)
***
Bolas, Nat, um post verdadeiramente arrepiante.
Agora vou ao teu link ver se há alguma hipótese de eu também viver uma coisa dessas.
Beijinhos.
:´) minha irmã
Fez-me bem vir aqui hoje!
Também me veio a lágrima ao olho.
Também fiquei com vontade de experimentar...
Ps: Também tenho os meus químicos
Muvi
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