27 de janeiro de 2016

perdoa-me, Dioguinho


Quantas cartas de amor já te escrevi mentalmente e quase nenhuma foi materializada. Não sei bem que tipo de mãe sou eu, que não fiz um album catita a relatar os marcos importantes da tua vida desde que nasceste, mas há com toda a certeza mães mais compostinhas.

Há dias os vizinhos de baixo desataram aos murros no tecto (quem é que chega com o punho ao tecto? O nosso vizinho que mede mais de dois metros) porque já não aguentam mais ouvir as tuas correrias. Várias vezes. Eu senti-me como se os murros tivessem acertado em cheio no meu estômago. Primeiro pela incredulidade, depois pelo choque de alguém decidir que essa é a forma mais eficaz de se dirigir a nós, mas sobretudo pela incompreensão e solidão que senti. Dez minutos depois cruzaram-se connosco na entrada do prédio e enquanto se preparavam para fugir sem nos cumprimentarem, eu e o teu pai demos-lhes uma lição de cidadania e boa educação.

Tive de lhes dizer que tu não páras. Tu não andas - corres. Sempre. Não sossegas e já tentámos tudo e é assim que tu és. Eles têm a infelicidade de viver debaixo desses teus pezinhos que parecem martelos nos nosso chão de madeira e tábuas soltas com mais de 100 anos. Pode parecer que não, quando o prédio todo abana com os teus passos, mas nós tentamos e esforçamo-nos constantemente para que faças pouco barulho. Acontece que tu tens dois anos e uma energia inesgotável. Há crianças que se sentam e brincam sossegadas. Tu não.
Quando a vizinha abriu a boca pela segunda vez para dizer a palavra "consistency" no que se referia à tua educação eu entrei em modo "surdez selectiva". Também eu já fui uma mulher sem filhos que via a super nanny e achava que a educação dum filho estava no papo. Firmeza e pronto. Disse sobretudo que também nós estamos exaustos, também nós queremos dormir e que lamentamos muito por eles também não conseguirem, mas que tu, de nós os cinco, és o único que não sabe ainda expressar-se de forma sofisticada, e que o que temos de fazer é procurar soluções realistas, juntos.

O que eu não disse aos vizinhos, além de que na minha terrinha são uns filhos da puta cobardes e malcriados, é que eles nem sabem nem sonham que todas as nossas certezas caem por terra quando nos nasce um filho. E primeiro achei que desejar que um dia tivessem um filho como tu (para engolirem a seco todos os julgamentos que fizeram) era uma espécie de praga - e isso é feio - mas não. Ter um filho como tu é um desafio maior do que alguma vez imaginámos, mas por incrível que pareça, no meio do cansaço e frustração, eu e o teu pai descobrimos e maravilhamo-nos coisas que nunca imaginámos, sempre. Ter um filho como tu é uma dádiva. Por isso sim, se um dia os nossos vizinhos decidirem ter um bebé, desejo que aprendam, para começar, a ser humildes, e que depois se encham de amor e paciência de sobra. E aí sim, possam ver que assim como não se pode impedir um recém nascido de chorar, não se pode impedir um menino de dois anos de correr. Não se pode forçar um menino como tu a estar sossegado quando bem nos convém, da mesma maneira que não se pode convencer um menino sossegado a começar a correr às seis e meia da manhã e parar às oito horas da noite. Que é o que tu fazes, com um intervalo de uma hora para sesta tua e recomposição minha.

Também não disse aos vizinhos nenhum daqueles clichés que todos ouvimos mas só fazem sentido depois de se ter um filho. Um deles é que aprendemos muito mais do que ensinamos. Nesse dia, depois da conversa acesa com eles no hall de entrada, tu foste dormir a sesta muito mais tarde do que era suposto. Estavas tão cansado e ansioso com o estado em que eu fiquei, que não conseguias adormecer. E eu só queria que dormisses. Fomos pela rua fora comigo a torcer para que adormecesses no carrinho antes de chegarmos ao café, mas não. Tentei manter-me calma e paciente mas não consegui ficar a dar-te mais beijinhos nas mãos quando me pediste que continuasse, e quando deste um grito de frustração e exaustão, eu dei-te um grito também e deitei-te à bruta, e fiz-te chorar ali no café, e foi o teu pai que teve de te pôr a dormir. Quando acordaste, ainda mal tinhas aberto os olhos, eu aproximei a minha cara da tua para te dizer que te queria pedir desculpas, e antes sequer de o fazer, tu já me estavas a dar um beijo. E quando te perguntei, para confirmar, se me perdoavas, respondeste depressa e baixinho: ja.

Obrigada, meu filhinho. E perdoa-me, por favor, por eu não conseguir ser tão nobre como tu. Perdoa os meus gritos e impaciência. Nunca tenho a certeza se te digo mais vezes que te amo e como és maravilhoso do que as vezes que ralho. Sei que provavelmente os nossos vizinhos vão ter um filho mais calmo que tu e vão continuar cheios de razão e verdades absolutas. Mas vão perder a oportunidade de ver o mundo e se ver a si próprios duma perspectiva que tem tanto de assustadora como de encantadora. Vão viver sem saber o que é ouvir para além do barulho irritante das correrias, amar para além da raiva, sorrir para além das lágrimas. Azar o deles, meu amor querido. E sorte a nossa.