28 de junho de 2015

tu

Fez há uns dias 32 anos que nasceste. Do alto do meu egoísmo, senti-me muito grata a esta vida e aos teus pais por teres nascido, te ter um dia encontrado e todos os dias dos últimos cinco anos e tal acordar ao teu lado. Estava a lavar as mãos (a mão) ao teu filho e a redigir este texto mentalmente, mas comecei a choramingar e tive de parar.
O Diogo caiu daquela altura toda e partiu o braço. Podia ter sido muito pior, como sabemos, e ainda assim, apesar de toda a minha culpa, da tua boca só vêm palavras de tolerância e carinho. É assim desde sempre. Lembro-me de comer uma litrada de gelado como almoço, e depois bolachas ou chocolate, e sentir que só podia fazer isso ao pé de ti sem sentir o menor constrangimento. Diz o Stephen Fry "You are who you are when nobody's watching." e sendo assim, eu sou tão eu, quando estou contigo. A comer merdas há uns anos atrás, a comer alfaces e sementes hoje. A ter crises existenciais sem fim. A perder a paciência e gritar com o nosso filhinho. Nestes dias ainda mais difíceis em que tenho de ouvir as perguntas e comentários das pessoas preocupadas com o bracinho do Diogo, refugio-me no teu silêncio tão sábio. Ensinas-me tanto sobre a importância de não dizer nada. Quando estava grávida e redonda e todos à minha volta me diziam para parar quieta e me sentar, tu eras único que me deixava completamente em paz. E era o teu bebé que eu carregava no meu corpo desassossegado. Tento aprender contigo a ser boa companheira e rezo para que sejas tão tu quando eu estou presente, como quando estás sozinho, porque isso é profundamente libertador. Acontece é que sinto que contigo eu sou melhor que eu própria.
Uma das melhores coisas desta vida é ver o 8 out of 10 cats contigo e passam-se minutos de silêncio até que um deles lança uma piada que nos faz gargalhar ao mesmo tempo. Para mim, a gargalhada é o que melhor nos une. Quando o cansaço já é tal que eu sinto que vou ter um colapso, mas não posso porque há um bebé a pedir-me mais um sorriso e mais um colinho e quando por fim ele adormece e então eu posso colapsar, ou quando a dor de costas é da nuca aos calcanhares, sinto que não é justo não ter uma réstia de energia para demonstrar melhor o que sinto por ti. És o melhor que a vida me deu. Fica aqui esta lição de português, está bem? Quando eu te disser que te amo muito, não é só isso que eu quero dizer. É isto tudo.

ontem, no facebook

Dioguinho, meu filho. Hoje o facebook encheu-se de arco-iris porque nos EUA o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado. Eu só soube porque vi os tais arco-iris. Não vejo as notícias, não leio os jornais e nem acho, como muita gente, que os EUA são o centro do mundo. O centro do meu mundo neste momento és tu. E eu desejo que tenhas a sorte de encontrar alguém como eu encontrei o teu pai. Alguém que à medida que conheceres, penses "isto é bom demais para ser verdade" e que se revele ainda melhor do que isso. Te faça ir às lágrimas de tanto rir, que seja cúmplice, que te faça sentir mais feliz e seguro de ti próprio do que se estivesses sozinho. Mas sobretudo alguém que ames, que ames muito muito muito. Que possas abraçar e beijar muito, com toda a liberdade que o amor merece. E se quiseres casar (eu e o teu pai até nisso somos parecidos - não temos o sonho de casar), então casa, querido. O amor tem de ser celebrado. É urgente que se celebre e ridículo que se "legalize" o amor. 
Escrevo-te aqui e agora porque se um dia eu ficar mais parva do que sou hoje e me insurgir contra ti por expressares o que és, e calhar de não seres um "comum" heterossexual, então ignora-me. E já agora perdoa-me. 
Hoje gritei contigo porque a minha paciência, infelizmente, é finita. Se há uns anos me dissessem que eu seria uma mãe que grita, eu não acreditaria. Hoje digo que nunca discriminarei um filho pela sua orientação sexual. E sinto uma paz profunda por teres nascido na segurança duma família que te ama e tolera, te acolhe no teu todo. Mas se alguém um dia te fizer sentir desajustado ou inferior por expressares algo que no teu íntimo sentes que é verdadeiro e bom, se alguém alguma vez tentar convencer-te de que a natureza não te fez perfeito e que o teu corpo não é só teu, mesmo que essa pessoa seja eu, por favor ignora os insultos e protege-te. E se quiseres casar, meu filhinho, casa!

23 de junho de 2015

caiu do escorrega

Caiu de uma altura de mais de um metro, desamparado. A minha alma partiu-se como um vaso vazio. 
Há uns tempos uma blogger lançou um livro sobre todas as coisas que nunca ninguém lhe disse sobre a maternidade e as mães histéricas cairam-lhe em cima. Haja pachorra para as mães histéricas. O meu filho tem 21 meses e ainda mama, passa mais de metade da noite na nossa cama, isto e tantas outras coisas que vou partilhando no facebook com os meus amigos (parto humanizado, parto na água, parto sem drogas, parto parto parto) fariam de mim uma dessas mães extremosas e histéricas, não fosse o eu saber o que é ser criticada quando me desfaço em mil para dar o meu melhor e isso nunca, mas nunca ser suficiente. Se há coisa que a maternidade me trouxe foi tolerância. Para com o meu filho, para comigo mesma, para com as outras mães. As que pariram anestesiadas num bloco operatório, as que não quiseram dar de mamar, as que deixaram o bebé chorar no escuro, as que gritam no supermercado, as que ameaçam castigar, as que ameaçam bater, as que batem. Falar é tão fácil, teclar é facílimo.
Disse-me uma vez uma amiga que quando somos mães de um, somos mães de todos, e isso é cada vez mais verdade para mim. Caiu do escorrega e eu nem sequer fui a primeira a lá chegar, nem a segunda, que as mães voam quando um bebé cai. Passaram-mo para as mãos, revistei-o e abracei-o e ali ficámos no meio do chão, ele aos prantos e eu a tremer. Nenhuma mãe histérica se aproximou de mim, ora pois, que o anonimato não é possível num parque infantil. Pelo contrário, só vi olhares de compreensão, só recebi palavras de conforto. Mães de um, mães de todos. Mães desfeitas em mil. E mil não é suficiente.
Vivo 24 horas por dia com o meu filho. Tenho muitas vezes a certeza que quem inventou a tortura do sono foi uma mãe. E quem inventou as creches também. Digam-me o que quiserem. Neste momento só acredito que as creches e infantários foram inventados por pais à beira dum ataque de nervos a precisarem desesperadamente de um momento sem filhos. Só é pena que não o admitam. A culpa levou-os a defender que os meninos precisam de socializar, de brincar com outros meninos, de ser independentes. Sim, sim. Como se tudo isso não fosse possível com os pais por perto. O que os pais precisam é de se recompor. É isto que eu vejo e sinto. Vejo-me fragmentada. Já várias vezes na minha vida passei por isto de me sentir desfeita. Desfeita (pulverizada) com o maior desgosto de amor da minha vida. Desfeita mentalmente com um esgotamento. Desfeita emocionalmente com uma depressão. Mas isto de ser mãe é permanente. É olhar para o espelho e ele estar todo estilhaçado. É ver-me em mil pedacinhos e não saber qual deles sou eu, qual é o meu filho. O Diogo é um pedaço de mim que vive cá fora e isso é tão confuso que às vezes tenho muita dificuldade em pensar. Em me concentrar. Em me ver. A gravidez prepara-nos para este abalo sísmico do ego. O ser dois em um. Outra teoria que cá guardo é que não é por acaso que carregamos o bebé nas entranhas. E não é por acaso que esse invólucro sagrado se abre e rasga com carne viva, sangue, suor e lágrimas à mistura. Porque isso é só um vislumbre do que se avizinha.
Ninguém nos diz das muitas coisas horríveis de ser mãe ou pai. Ninguém diz porque na verdade não vale a pena. Pensávamos que seria difícil, e na verdade é quase impossível. Pensávamos que seria bom, e na verdade é muito melhor. É maravilhoso e compensador de formas que nunca imaginámos. É olhar para o espelho todo estilhaçado e na maioria das vezes ele ter o encanto hipnotizante dum caleidoscópio.



3 de junho de 2015

um ano e nove meses

Vinte e um meses, hoje.
Perco a paciência e levanto a voz (às vezes grito, raramente, mas grito) mais vezes do que queria. Culpo o facto de estarmos juntos vinte e quatro horas por dia há 21 meses. Às vezes dava-me muito jeito ter alguém com deixar o Dioguinho nem que fosse por uma hora, para o bem de ambos. De resto, fascina-me isto de ser mãe e de ver de perto um bebé tornar-se gente. Não trocava o que tenho por nada. Só pelo mesmo com um pouco de babysitting.

Não é correcto chamar filhos da puta aos dentes do meu filho, mas é isso que lhes chamo. Desde que começou esta coisa rara (pelos vistos é raro sofrer-se tanto como o Diogo sofre com a vinda dos dentes) que as nossas noites sossegadas passaram a um número de circo executado por dois adultos exaustos e um bebé desesperado de dores, entre uma cama de casal e um berço, uma mama de fora, ou as duas e - rufam os tambores - respeitável público, até à data, ninguém caiu ao chão!
Como dizia, os molares do meu filho estão a caminho. No dia em que ele tiver todos vinte dentinhos de fora, faço a festa que não fiz no aniversário de um ano.

Não sabe o que é bolacha maria. Nem comida processada. Quer sempre provar o que eu estou a comer. Come quando quer, o quanto quiser, de maneira que quando tem fome, come como um adulto. E graças aos dentes de que tanto me queixo, come coisas que nunca pensei que gostaria, como uvas passas, tâmaras, bagas goji e figos secos. São as guloseimas dele. Continua a adorar bróculos e legumes em geral. Um dia quis provar salada e até eu fiquei pasma quando pediu para repetir. Era couve roxa, aipo, cebola, cenoura, salsa... tudo marcha. E não engorda. Abacate com outras frutas, batidos e papas com leite de amêndoa e sementes de chia, sumo verde cheio de couve, pepino, salsa e coentros. Uma coisa boa de ser ver. A não ser que estejam para vir os dentes, claro. Aí quer é o xarope para as dores e mamar de hora em hora. E morder todo e qualquer objecto.

Já várias vezes achei que ia enlouquecer. Mas a Natureza é sábia e dotou-nos duma amnésia selectiva muito eficaz. A mesma que nos faz desejar parir outro filho quando ainda nem os pontos levámos.

Fala e faz-se entender tão bem. Só começou a apontar com o dedo indicador há pouco mais de um mês. Tem amigos em todas as lojas que frequentamos no bairro. Pessoas favoritas de quem sabe e diz os nomes e repete-os vezes e vezes sem conta, a pedir-nos que o levemos até elas. Conhece as rotinas, os caminhos, as portas das lojas e do nosso prédio sem hesitação. Percebe tudo o que dizemos, sabe o que pode e não pode fazer. Faz o que não pode e vem confessar-se a dizer né né né. Também diz iá num tom tão holandês que chega a ser cómico. Sempre que vê passar um avião diz "avi" e recentemente descobriu a lua.
Dança. Canta. Finge que espirra. É loucamente apaixonado pelos avós. Não faz daquelas birras típicas (ainda) mas quando é contrariado é capaz de nos morder ou bater. Depois diz né né né.
Não sei o que seriam os momentos difíceis de não tivesse este livro.

Como precisávamos dum degrau para chegar à pia, comprámos um conjunto que já traz potinho e assento para a sanita. Deixámos o potinho aqui na sala, para ele já se ir familiarizando e sentando. Em vez disso, finge que cozinha - potinho debaixo do braço, colher a mexer vigorosamente, prova a comida imaginária e a delicia-se com huuuuuuuuuuums estridentes. E se olharmos duas vezes pergunta-nos se somos servidos.

Damos beijinhos à esquimó. Digo-lhe ao ouvido "amo-te tanto tanto tanto tanto" e peço-lhe que me diga também. Sussurra "titititi".