14 de março de 2015

chamam-lhes buskers

Ali num dos túneis junto ao rio Tamisa, se não é no da oxo tower é outro ao pé de Blackfriars, há um violinista talentoso mas muito zangado com a vida, que assim que alguém pára para o ouvir, pára de tocar. A primeira vez que parei, tão feliz de expor meu rico filho a tão belo som, o homem parou e olhou para nós. Retomou. Eu, inocente e um pouco parva, nem sequer percebi do que se tratava. Fui ao porta moedas e deparo-me com uma nota de 20 libras e umas moedinhas pretas. Virei costas para ir ao café da esquina e trocar a nota, e eis que o senhor pára de tocar outra vez e começa a praguejar aos berros na língua dele. Fascinante como não é preciso ser poliglota para perceber quando nos estão a chamar puta. Se não tivesse um filho pequeno e não tivesse imaginado o homem enlouquecido a bater-nos com o violino, ter-lhe-ia não só dado aquela moeda de uma libra (que dei), e agradecido (que agradeci), mas também perguntado se aqueles gritos eram comigo (e desejado que dias melhores lhe acontecessem). Quanta amargura, quanta raiva.
Isto para dizer que aqui no nosso bairro há um rapaz a tocar guitarra e a cantar à porta do supermercado que é talento em estado puro. Sempre que o vejo estaciono o carrinho a dois metros dele e o Diogo fica ali na primeira fila, hipnotizado. Tão humilde quanto tímido. Desfaz-se em sorrisos e já nos reconhece. Canta versões mas tem a própria banda com quem toca e canta músicas originais. Só desejo que o sucesso lhe chegue depressa, porque inocente e um pouco parva que sou, acredito com muita força que a sorte se faz com as nossas próprias mãos, e quem carrega boas energias e põe amor naquilo que faz (por mais adversas que sejam as condições), merece viver disso e prosperar em todas as direcções.

achado nos rascunhos 05/08/2014

Um dia vou olhar para trás e rir-me (não é que não me ria agora, mas vou rir-me com mais vontade) desta fase em que os meus dias eram passados com um bebé que quando não estava a rastejar pela sala, estava pendurado em mim, e que nos poucos minutos entre uma coisa e outra eu estaria a pintar móveis, vender livros, contactar lojas, ouvir nãos, ouvir talvezes e agarrar-me aos sins com a força da necessidade (essa força maior que a força de vontade, porque o que tem de ser tem muita força) de quem não tem alternativa. Há sempre alternativas, claro, mas no meu caso eu enlouqueceria se não fizesse (ou tentasse fazer) outra coisa para além de ser mãe. O que roça a loucura, porque ser mãe a tempo inteiro é trabalhar 24 horas por dia, mas é assim que eu sou e sinto e penso.
Voltou a acontecer. Sonhei que ganhava a lotaria e no meu sonho comprava aquela lojinha que ando a cobiçar há meses (que já foi um café vegan e por isso tem bom karma), estava a planear a decoração e já me via a vender os móveis, as ilustrações, os bolinhos caseiros, já me via com o Faneca a tratar de toda a parte administrativa e burocrática e sentia esta alegria profunda de me ver na minha lojinha, livre do medo de não fazer dinheiro porque afinal de contas tinha ganho a lotaria.

3 de março de 2015

um ano e meio



Um ano e meio de Diogo cá fora. Há dias sentia o coraçãozinho dele a bater acelerado e dizia-lhe que aquele coração já bate sem parar há mais de dois anos.
Não sei para onde foram as horas e os dias. Sei que todas as certezas que tinha antes de ter um filho cairam por terra, e chego a ter vergonha das coisas que já pensei e disse sobre bebés. A única certeza que tenho hoje é que cada casal deve fazer aquilo que funciona para si e para o seu bebé, o que os faz feliz. Tudo o resto que dizem os profissionais de saúde, os livros, os sites, os palpites bem intencionados de quem não faz parte deste trio, se não nos soa a certo, é pura e simplesmente ignorado.

Se pudesse voltar atrás no tempo e dar um conselho a mim própria antes de sequer engravidar seria, sem dúvida, que ouvisse o meu instinto sem hesitar. Ter-me-ia poupado muita angústia.

Temos um filho à espera de projectar e moldar nele todos os nossos ideais, e quando nos damos conta ele está é a agir como nós, a gesticular como nós, a falar como nós. Só que tudo é exagerado com requinte de caricatura, incluindo os nossos defeitos e tudo o que achámos omitir.

Um ano e meio e percebe tudo o que dizemos, em português e holandês. Estamos constantemente sob escuta. Adora animais, sobretudo cães. Gosta de pessoas em geral e do pai em particular, com quem joga às escondidas e às perseguições e com quem dá longos passeios pela casa de mão dada. Aspira o chão e pára para dar beijos no aspirador. Dá beijos em tudo, diz olá a objectos e pessoas e se o quisermos fazer feliz é só levá-lo à estação, ver passar uns quantos comboios e depois entrar num.
Ainda mama e desde que começou o martírio dos dentes acorda vezes sem conta durante a noite. Adora ajudar a fazer a comida, gosta de comer o que cozinhou tépido (não há comida de que não goste) e de sopa fria. Anda há mais de um mês mas ainda não corre. Faz-se entender muito bem com a sua linguagem gestual acompanhada de bás, pás, cãs e umas quantas palavras com mais de uma sílaba.
Nunca pára quieto.

Quanto a mim, nunca cheguei a sentir aquele amor maior e arrebatador, talvez porque já me sentia capaz de o amar assim, já o amava quando saiu de dentro de mim naquela piscina. O que me surpreende é onde esse amor me leva. Transforma-me e revolve-me as entranhas, abala até o que eu achava ser inabalável em mim. Os limites da paciência, da frustração e do cansaço esticam-se, rompem-se e redefinem-se todos os dias. Tantas coisas perderam a importância e tantas ficaram em pausa, para que eu seja hoje uma mãe a tempo inteiro e ilustradora nos minutos vagos.

Há dias o sol brilhou e entrou quente pelas janelas da sala. Eu imaginei-me imediatamente a tomar um café e ler um livro sentada no sofá, mas o que aqueles raios de sol revelaram é que não há superfície desta casa que não tenha pó, ou dedadas de comida, ou ambos. Dei comigo a praguejar enquanto limpava freneticamente o que podia e a rezar a todos os santinhos para que já que sou uma incompetente duma dona de casa, ao menos que seja boa mãe.