31 de julho de 2015

esplanar

Empurro o carrinho colina acima, digo ao Dioguinho que se encoste para trás e tapo-o com o cobertorzinho. Se tudo correr bem, adormece pouco antes de chegarmos ao meu café favorito e terei uma hora de esplanada só para mim. Peço um sumo de cenoura, deixo um fundinho para quando ele acordar e permito-me a batota na minha dieta desintoxicante: um descafeinado cheio.
O ruído é quase nenhum quando ele adormece e eu tenho um caderno nas mãos e uma lista na cabeça. Os meus planos mais importantes e ambiciosos, como publicar o próximo livro, agendar uma sessão de yoga, arrumar o meu guarda-roupa, cumprir as resoluções de ano novo... isto sou eu a tentar reconstruir o meu ego, pedacinho a pedacinho, cada caco em busca dum encaixe. Cola nos dedos, nas mãos, por todo o lado. Uma doente mental em recuperação contínua.
Mas ali na esplanada, diante de mim e a tornar impossível a simples tarefa de fazer uma lista estão três mães. Cada uma munida de seu bebé rechonchudo e vivaço. Eu agarrada aos meus cacos, tento concentrar-me (já só tenho menos de uma hora) e da mesa delas vem uma conversa que me é tão familiar que é impossível não ouvir. Falam do sono, das mamadas noturnas, da papa que dão, da marca da papa, das lentilhas em puré, da mama e do biberão, da roupa, daquela vez em que a bebé fez cocó até às costas e durante a muda de fralda vomitou e ficou toda suja de cocó e vomitado. Fazem muitas perguntas umas às outras e tentam fazê-lo de forma descontraída e casual. Pelo meio riem-se e falam com os bebés naquele tom típico, pedem desculpa às mesas vizinhas porque eles palram alto e têm tanta coisa importante para dizer. Acho que se conhecem há pouco tempo. Tentam mudar de assunto mas não conseguem. Resvala sempre para o mesmo. Não se calam por um segundo e eu ao fim de trinta já não estou só entediada, estou com muita pena de não ter trazido o ipod do Faneca. Olho à volta e pergunto-me se as outras pessoas sentem uma repulsa tão grande quanto eu. Se o facto de eu também já ter tido um bebé de oito meses me faz mais tolerante, ou pelo contrário. Acho que pelo contrário. Mas de repente apercebo-me porque me incomoda tanto aquilo tudo. E a repulsa que sinto dá lugar a uma enorme compaixão e faz-se-me um nó na garganta. Nenhuma fala de si própria. Nenhuma sabe falar de mais nada. O ruído que ouço para além do riso e alegria e luz do sol e bebés é um estilhaçar contínuo, um ranger, um esmigalhar dos cacos delas. Dos egos soterrados delas.

Volto aos meus cacos e à minha lista. Já consigo pensar e escrever. Já consigo ver-me outra vez. Rio-me para elas e para os bebés lindos que têm ao colo. Acabo a lista antes do meu bebé acordar.