15 de maio de 2007

quando um gato chora

Na rua dos meus pais passam carros em excesso de velocidade. Gato atropelado tornou-se prato do ano e eu comecei a formar uma carapaça à prova da dor de ver mais um morto na estrada.
A vida de gato é essa liberdade de ir onde quiser, dormir fora, apanhar sol na varanda da casa da vizinha. E se um gato volta para casa, se deita na nossa cama e nos cobre de turras e ronrons, é porque quer mesmo estar connosco. Surpreendentemente para os que odeiam gatos ao ponto de nem os poder ver, os gatos amam. Amam profundamente. Amam os seus donos e no caso desta história, amam os seus irmãos.

A minha mãe comprou o Batman e o Robin na feira. Nem me vou pronunciar em relação à escolha dos nomes.
Os gatinhos cresceram juntos tentando sobreviver à fome da Gioconda e ao amor desmesurado da Boni por bebés. Ela queria lambê-los (e lambia!) e carregá-los pelo cachaço. A Gi ficava de olho, cúmplice do Peter nas ciladas.
Para ajudar os gatinhos a escapar aos cães, ensinei-os a saltar (fazendo-os voar com a mão do chão para cima da mesa) e a trepar ao seu poleiro e às árvores, em treinos intensivos.


Em pouco tempo os dois gatinhos ficaram enormes. Especialistas em trepar às árvores e em caçar qualquer coisa que mexesse. Os cães deixaram de ser uma ameaça e a vida de gato corria bem. Apenas pairava sobre eles a maldição da estrada.

Estava eu no hipermercado com o Bruno quando a Cilu telefonou. Voámos para a frente de casa. Ali estava o corpo. Para trás um rasto de sangue e nem sinal de o carro ter parado. A minha dúvida sobre se seria um dos nossos gatos (o corpo estava tão gordo...) desvaneceu-se quando a poucos metros vi o outro a olhar para nós. E dali não saiu até que nos fossemos embora e ele pudesse ficar a sós com as marcas na estrada e com a sua mágoa.

Dentro do Robinho nasceu uma dor que não se apaga. A memória do atropelamento, do rasto na estrada que ele farejou centímetro a centímetro quando nos fomos embora, do irmão nas minhas mãos e da noite que passou sozinho. Quando está mais triste e ninguém vê, chora muito. O seu focinho cobriu-se de pêlos escuros. Não aceita o meu colo e arranha-me se eu o forçar. Nunca mais lhe ouvi o ronrom. O seu mio mudou, a sua postura... Decidimos trazer-lhe o um gatinho.


O Matias era doente e muito fraco. Mas falou logo com o Robinho.
"Olá. Queres brincar? Eu vim de Perre, a minha mãe perdeu-se de mim... Queres brincar?"
O Robin detestou o Matias. Deu-lhe desprezo. Mas o Matias não desistiu. Muitas foram as vezes em que se aproximou já de orelhas recolhidas, pronto para levar uma unhada na cabeça. O Matias precisava desesperadamente de alguém. Precisava de continuar a acreditar que a mãe não o tinha abandonado. O Robin rosnava, batia e afastava-se com a sua dor. Chegou a persegui-lo até o Matias se esconder em recantos muito estreitos, a salvo das suas garras. Um dia vi-o a falar com ele. Estava sentado em cima do muro. O muro tinha apenas 1 metro de altura mas do outro lado tinha 3 metros. Sabendo que o Matias ainda era um bebé e que nunca tinha saltado, o Robin aproveitou.
"Matias: Que estás a fazer aí?
Robin: Estou a apanhar sol. Consegues subir para aqui?"
Era a oportunidade de o Matias conquistar a sua confiança.
"Matias: Sim!
Robin: Quero ver."
Felizmente eu cheguei a tempo de dar uma ajuda ao Matias e de o colocar em cima do muro. Mas o Robin continuou a mostrar-lhe como era a vida de gato, levando-o para a beira da estrada para verem os carros passar.
"Matias: São rápidos! E grandes. Fazem tanto barulho....
Robin: Sim.
Matias: Podemos ir embora?
Robin: Porquê? Tens medo?
Matias: Não!"


Um dia o Matias apanhou o Robin a dormir e começou a lambê-lo. O Robin acordou mas não abriu os olhos. Recordou-se imediatamente de quando dormia com o irmão, das suas lutas felinas incríveis e de como se lavavam juntos. O Robin começou a chorar mas o Matias fez de conta que não viu. E foi assim que ficaram amigos.

13 comentários:

Anónimo disse...

Tenho saudades do meu bat!

http://www.flickr.com/photos/brunosantos/355815426/

Van Dog disse...

lindo.

Anónimo disse...

Maravilhosa a história......

Reticências... disse...

Acredita que me vieram as lágrimas aos olhos...

Anónimo disse...

Adoro gatos... e nao tenho palavras pa descrever a ternura com q o robin me recebe cada vez q apareço ai em casa...

nat. disse...

ESTOU COM LAGRIMAS NOS OLHOS.. o que atendendo que estou no local de trabalho.. é triste muitas pessoas se esquecerem que os gatos e quaisquer outros animais têm sentimentos..

Eu adoro gatos.. o meu Lucky morreu de causas naturais há 3 meses...

Sei que não o vai substituir no seu jeito de ser, mas já nasceu um gatinho lindo para ir para minha casa...

Cá fora custa-me não ter animais...

às vezes sinto-me perdida cá...

Beijinhos

Anónimo disse...

Gato meu não vai para a rua, sendo previsível e mais que certo que morram atropelados... É chato não poderem correr atrás dos passarinhos, subirem às arvores, gozar em pleno a liberdade, mas acabarem esborrachados pelas rodas de um automóvel... isto quando têm morte instantânea, o que nem sempre é o caso e nem sempre os donos sabem o que se passou com eles!
Se foi o ser humano que criou os perigos e condicionou com eles a vida dos animais, tem de ser ele agora a protegê-los...

tons neutros disse...

Olá Nat!
Adorei a história!
A minha fofinha também foi atropelada quando se assustou com a panela de pressão da minha avó,fiquei muito triste e nunca pude mais ter gatos porque fiquei com asma.
Bj
Sara

Anónimo disse...

eu tenho medo de gatos! não tenho medo da minha gata linda que um dia me ofereceram de prenda de aniversário, na esperança que eu perdesse o medo dos felinos! a carlota chegou num caixote e eu pensei:
- meu deus!!! como vou viver nesta casa com este bichinho!!! nem vou dormir de tanto medo!
ao contrário da maioria, a carlota conquistou-me, pouco a pouco, com muita calma! hoje somos grandes amigas e já passamos por muitas mudanças... sempre juntas!
quando estive grávida, deixei de dormir, devia ser da euforia, a carlota não dormiu durante todos os 8 meses, sempre atenta às minhas angustias e alegrias. ainda tenho medo dos outros gatos, mas adoro-os a todos!
beijo bárbara

Anadosol disse...

Nunca pensei que a perda de um bichinho me fizesse tanto mal como quando o Neco desapareceu. O meu cão-raposa foi vítima de um atropelamento-fuga por um mentecpto qualquer. Ficam as memórias e a sensação de que o espírito dele vagueia pelo quintal, aos saltos e à espera dos donos, de papo para o ar! (lágrimas!)

O mundo ao contrário disse...

que linda historia.. fiquei com lagrimas nos olhos tambem...

mio disse...

'A vida de gato é essa liberdade de ir onde quiser, dormir fora, apanhar sol na varanda da casa da vizinha. E se um gato volta para casa, se deita na nossa cama e nos cobre de turras e ronrons, é porque quer mesmo estar connosco. Surpreendentemente para os que odeiam gatos ao ponto de nem os poder ver, os gatos amam.'

Esta é a melhor descrição de um gato que já li.

Anónimo disse...

Já nem me lembro quando descobri este blog...foi por acaso, mas passou a fazer parte dos meus passeios virtuais...nunca comentei, mas a este post não resisto a fazê-lo...ADORO gatos, todos...mas adoro milhões um que é tão especial, o meu...é lindo, tem olhos verdes e pelo azul e um cheirinho a gato felpudo que me dá uma paz tão grande...faz ronron e dá beijinhos (vem ter connosco e lambe a ponta do nosso nariz)e também chora...
Este ano chorei muito, fiquei sem o meu pai, que era também o meu melhor amigo...quando chorava sozinha ele não deixava...vinha para ao pé de mim e chorava também...olhava para mim e dizia (de certeza que dizia), que não me ia deixar sozinha e que ia cuidar de mim...e cuida, dar carinho é cuidar, não é?
Obrigada por partilhares estas histórias bonitas...e enternecedoras...