Um dia destes estava eu a voltar à sala dos 20 depois de lavar pincéis e copinhos de iogurte e deparo-me com a seguinte cena: João e Pedro, um de cada lado da Filipa (a menina que tem um problema qualquer não assumido pela família e algum atraso no desenvolvimento) a colocarem-lhe um enorme saco de plástico azul na cabeça.
A Filipa é diferente. Hoje está muito melhor, antes quase nem comunicava comigo e eram poucos os exercícios que fazia. Agora faz tudo, à maneira e ao ritmo dela. Mas não deixa de ser diferente, de parecer uma totó, de ser motivo de chacota. E eu que já mais de uma vez defini muito bem a minha posição em relação ao assunto "fazer pouco dos outros" naquela turma, quando vi a Filipa indefesa no meio dos dois pequenos demónios da turma, tive um gigantesco ataque de fúria. Mandei um par de berros tão assustadores ao Pedro (que nesse momento estava empolgado a mostrar ao João como fazer) que os olhos dele imediatamente se encheram de lágrimas. Aproximou-se de mim com uma das suas boas mentiras (regras de sobrevivência de um menino muito pequenino que apanha forte e feio em casa): "Ó pufessora foi o João, eu estava a tirar!".
Respirei fundo. Ralhei. Expliquei o perigo do saco de plástico na cabeça, disse que não se incomoda os outros, não se bate, não se goza, não se arrelia. Não se faz nada que não gostemos que nos façam também.
Fiquei com a imagem da Filipa com aquele enorme e ridículo chapéu de cozinheiro azul, quieta, ainda sem reacção. Para ela aquilo nem deve ter tido importância. Mas para mim foi um soco no estômago.
Hoje, no monte, o Zé que fala baixinho e que não me dá confiança, estava a chorar baixinho. Magoado. "O que foi Zé? Tiraram-me a bola. E a bola é tua? É. E quem ta tirou? O Raul e o Diogo."
Dá-se o meu segundo ataque de fúria da semana. Os dois rufias da escola escolheram como vítima o Zé (que também não é santo mas é mais pequeno que eles, é só um, é magrinho e fala muito fininho e baixinho. E é o dono da bola.). "Anda Zé que vamos buscar a tua bola agora."
Toda a turma rejubilou. A professora estava prestes a meter medo aos meninos grandes de quem todos têm medo. Chegámos lá a baixo e o Zé foi cheio de coragem ao encontro dos matulões (um deles tem cara de homem, é rouco, tem braços musculados e cerra os dentes quando ameaça alguém de punho no ar, seja menino ou menina, da idade dele ou mais novo). Assim que me viram ("Olha quem vem aí!") atiraram-me a bola e quase fugiram mas já era tarde. Bombardeei-os com uma sequência de perguntas que só podia levá-los a dar-me razão e a, depois de uns segundos de silêncio, pedir desculpa ao Zé na frente dos outros meninos. Pura humilhação. Ainda houve espaço para uma ameaça de porrada no Domingo (missa?) mas eu estava ali, gigante, de bola na mão, pronta para ameaçar por cima com a possibilidade de falar com os pais. E já se sabe onde estes meninos vão buscar o uso da força para impor respeito...
Apesar da fúria, tive o cuidado de os fazer ver o lado do Zé: "Eu sou maior que vocês os dois juntos e não vos tiro nada sem autorização e sabem porquê? Porque não sou malcriada. Porque não sou injusta. Não sou má. (...) E se alguém vos tirar alguma coisa assim como vocês tiraram ao Zé? Ah leva logo um soco! - aproximei-me do Rambo - Então adivinha lá porque é que o Zé não te dá um soco a ti."
O Rambo começou a rir-se, atrapalhado e foi essa a nossa deixa para voltar à sala de aula, como heróis. Os meus pequeninos bochechudos estavam ansiosamente à espera de saber se eu tinha batido em alguém, está claro. Aproveitei para lhes perguntar se também vão ser como o Raul e o Diogo quando crescerem...
Sei que não poderia fazer isto com meninos da cidade, muito menos meninos com mais de 10 anos, pois aí o Zé não teria de esperar por Domingo para se arrepender de ter falado. Felizmente pude fazê-lo. Penso sempre em que adultos se irão transformar estas crianças.
Para desanuviar, desenhámos muito no quadro e o Duarte* também teve direito a mimo especial. Quando cheguei e ele veio pela mão da funcionária ao meu encontro, olhei para a sua cara suja de tudo (manteiga, migalhas, ranho, etc) e decidi, arriscando-me a desautorizar a senhora, pegar nele e ir lavar-lhe a cara (mesmo sem sabonete, que desse só há por milagre). E ele na boa. De repente aquela cara escura e seca parecia uma cara de criança e eu tive vontade de o ter mais tempo comigo só para o acarinhar.
Depois consegui fazê-lo ir ao quadro e por lá ficou até ao fim da aula, deliciado com o giz azul nas mãos... e na cara.
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6 comentários:
Nem tenho palavras Natacha. Trabalho, como já disse há uns tempos, com adolescentes e muitas vezes penso como foram nas idades dos "teus" meninos e como alguns se têm aguentado com histórias tão complicadas. Contactamos com idades diferentes e histórias tão parecidas. Continuo sem as palavras certas.
Beijinhos,
Marta
Mundo cruel!
Acho que o Zé jamais se esquecerá de ti :)
Dos outros dois já não direi o mesmo, mas como nunca se sabe, vale sempre a pena tentar, não é?
imaginar as minhas filhas neste mundo cruel...glup!
É tão bom saber que há pessoas que não empurram os problemas com a barriga, à espera de quem venha atrás feche a porta. É vital que quem trabalha com crianças trabalhe sobretudo com elas e que saiba ouvi-las. Por elas, muito obrigado.
Sandra Silva, V.C.
Fico muito feliz por haver pessoas como tu...alguém que tenha sensibilidade para "combater" pequenos rambos e fazer ver que o mundo não pode ser egoísta nem violento!
Fiz link para o Duarte e fiquei sensibilizada com a história dele...
Não te conheço... mas depois desta tua descrição já gosto de ti
=)
MUITOS PARABÉNS pelas tuas verdadeiras obras de arte!
=)
Beijinhos
*Liliana Azevedo
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