9 de setembro de 2009
autobiografia
Ando a (des)arrumar a casa. A quantidade de tralha que uma pessoa junta, meu deus. No meio da tralha estão alguns quadros que fiz na faculdade. Este tocou-me especialmente. Voltar a olhar para ele. Pertence a uma série intitulada "Autobiografia", feita nas cadeiras de Pintura e Desenho, inspirada no poema homónimo de António Gedeão.
Depois de uma depressão não se pode ler este poema com o mesmo tom. Assim como eu não posso ver este quadro com os mesmos olhos. Em 2004 tentei ilustrar aquilo que para mim, hoje, não precisa de ilustração, de explicação ou termos científicos. A doença (como o neurologista se lhe referiu) é um poço. E a pessoa doente cai algures dentro de si. Perde-se. Começa a apagar-se, a desaparecer, à medida que perde a consciência de si mesma e das fronteiras entre o que se passa por dentro dela e a realidade.
O mais assustador na depressão é o facto de poder ser invisível. Ninguém pode imaginar, até experimentar, o que é estar aparentemente presente. Conversar, ouvir, falar, comer. Tudo aparentemente, enquanto por dentro se vive um inferno.
A minha modelo foi a Nhocas. Gostei tanto de reencontrar o quadro que decidi pô-lo à venda aqui. O poema é este:
Autobiografia
Enquanto comia
num gesto tranquilo,
comia e ouvia
falar-se daquilo.
Comia e ouvia
solicitamente,
como se presente
presente estaria.
E enquanto comia,
comia e ouvia,
a frágil menina
que no fundo habita,
que chora e que grita
saía de mim.
Saía de mim
correndo e chorando
num gesto revolto,
cabelinho solto,
roupa esvoaçando.
Ia como louca,
chorava e corria,
enquanto eu metia
comida na boca.
Fugia-lhe a estrada
debaixo dos pés,
a estrada pisada
que o luzeiro doira,
serpentina loira
que vai ter ao mar.
Corria a menina
de braços erguidos,
seus brancos vestidos
pareciam luar.
Por dentro ia a noite,
por fora ia o dia.
A vida estuava,
a maré subia.
Caiu a menina
na praia amarela,
logo um molho de algas
se apoderou dela.
Se apoderou dela
carinhosamente,
que as algas são gestos
mas não são de gente.
Caiu e ficou-se
deitada de bruços,
desfeita em soluços
sem forma nem lei.
Ó minha aguazinha
faz com que eu não sinta,
faz com que eu não minta,
faz que eu não odeie!
Aguazinha querida,
compromisso antigo,
dissolve-me a vida,
leva-me contigo.
Leva-me contigo
no berço das algas,
que o sal com que salgas
seja o meu vestido.
Ficou-se a menina
desfeita em soluços,
seu corpo, de bruços,
com o mar a cobri-lo,
enquanto eu, sentado,
sentado comia,
comia e ouvia,
falar-se daquilo.
António Gedeão
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7 comentários:
bem... ADORO-O.
Juro que é nestas alturas que odeio ser pobre. Quero-o muito.
Beijinhos NAT.
Beijinhos da Ana Cristina
Quero mesmo que nos encontremos para falar da tua participação na galeria/loja... mas acima de tudo para estar um pouquinho contigo... talvez uma mudança de ares possa pelo menos ter algum efeito positivo!
Desculpa ainda não ter respondido ao teu e-mail, mas estes últimos dias antes da abertura estão a dar cabo de mim!
Bjocas e montes de boa energia para ti
Esqueci-me de dizer...
O quadro?!... é lindíssimo! Fiquei maravilhada com ele!
Gosto muito deste teu quadro, Natacha (isto é redundante, eu gosto de tudo o fazes, raio de miúda com talento)... Nem sei como consegues pô-lo à venda, mas há que ultrapassar algumas coisas e seguir em frente, né?!
Beijinhos, Rita
um beijinho...
elisabete
Minha manoca, gosto mt de posar para ti....fico lisonjeada por me escolheres...já na altura essas palavras faziam um mundo de sentido p mim...lamento tanto que agora façam para ti...Para quem não conhece os outros posso dizer q são igualmente bonitos (tenho um na minha casa ;)). Estou aqui para ti!!!Muitas beijocas godas, Nhocas
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