Todos os dias, por volta das 8h da manha, ele entra na mesma estacao de metro que eu. Vejo-o todos os dias. Ouco-o todos os dias com a mesma ladainha. Olho para a janela e vejo o reflexo dele a passar entre as pessoas. Leva uma mochila as costas e parece-me um menino.
Como e' que uma pessoa cega escolhe a roupa? Sera que ele sabe - que alguem lhe disse - de que cor e' a mochila dele?
O senhor cego da linha verde pede, sem parar. Troca de carruagem. Continua. Faca chuva ou sol, la esta ele. No metro vazio dos feriados ou 'a pinha, em hora de ponta. Nao tem uma mao e e' com esse mesmo braco que ele segura o copinho das esmolas. Uma vez observei como as pessoas se afastam dele na plataforma, mesmo as que estao sentadas e em quem ele inevitavelmente tocaria com a bengala (um cabo de vassoura) ao passar. Levantam-se, ele passa pelo banco vazio, e voltam a sentar-se. Parece um jogo. A cabra cega mais cruel de sempre, em que o cego nunca desvendara' os olhos e, ao passar por tanta gente que se desvia, parece estar sozinho na estacao do Martim Moniz.
Ouco-o a repetir "O deficiente agradece a quem possa auxiliar..." e so penso meu deus, se me cansa tanto ouvi-lo durante um minuto (e sinto que o meu cerebro mirra nesse interminavel minuto em que ele percorre a carruagem) imagino o que e' dize-lo e ouvi-lo o dia todo. Como e' que ele nao desiste? Como e' que ele esta la todos os dias? Sera que houve um dia em que se meteu na cama a comer, como eu faco? E eu tenho as duas maos e os dois olhos. Escolho a minha roupa na loja, no armario. Escolho o meu lugar no metro. Mas nao tenho a forca de vontade que ele tem, a concentracao e o empenho em alcancar um objectivo a que me proponha.
Ja ha mais de uma semana que nao faco um desenho. Sinto-me culpada por isso. E ainda mais por, em vez de desenhar, me apetecer meter na cama a comer.