5 de março de 2007

lágrimas deles, lágrimas minhas

Hoje o Miguel de 6 anos fez uma das suas birras que com certeza resultam em casa. Disse-lhe que estava a perder tempo, que não me comovia minimamente, que nunca conseguiria nada de mim dessa maneira e levou um par de berros quando chutou uma cadeira. Chora muito e não pára de argumentar, com voz anasalada e olhos que lhe saltam dos óculos. Eu, coração de pedra, ralho-lhe e elogio de seguida quem se senta ao lado das meninas sem se sentir "menos homem" por isso (que foi o motivo da birra do Miguel).
Já não terei tanto coração de pedra quando eles choram sem ser por birra e às escondidas. A Filipa tem um problema qualquer que não é assumido pela família, mas que tem características de Autismo. Vira um olho para cada lado como um camaleão e viaja num mundo só dela. Tem problemas de concentração e de desenvolvimento mas é muito meiga comigo. Como não tenho de fazer diagnósticos, trato-a simplesmente como aos outros e ela tem progredido imenso. No início nem desenhava e agora faz quase tudo, pinta e vem mostrar-me orgulhosamente as coisas que faz. Mas os meninos não perdoam e sabem que ela é estranha. Um dia chamei-a para vir desenhar ao quadro e o David disse "Oh ela faz tudo mal!", ficando imediatamente proibido de vir também. Entretanto, na mesa, a Patrícia divertia-se a esconder coisas da Filipa para ela ficar confusa e o Pedro, já impaciente por ela desenhar tão mal, desenhava na folha dela. Fiquei possuída. Diante de todos, disse-lhes que quem desenha bem ali sou eu e que nunca gozaria com eles por fazerem coisas fáceis ou desenharem pior do que eu. No fim da aula disse aos três criminosos do dia que não fossem embora porque eu queria falar com eles. O David veio imediatamente pedir-me desculpas mas teve que ouvir tudo até ao fim. Perguntei-lhes se não reparavam que a Filipa é diferente deles e eles disseram que sim. Disse-lhes que ela não faz as coisas mal porque quer, simplesmente não consegue fazer melhor e que não podem tratá-la assim, nunca mais. Nem a ela nem a ninguém e que deveriam pedir-lhe desculpa. Saíram todos a correr e eu fui-me embora triste, alheia ao facto de que ali, como professora, tenho às vezes tanta autoridade como os pais. Lá fora esperava a razão por que eles saíram a correr. Se a professora os segurou no fim da aula, é porque aprontaram das boas!
O David estava sentado no muro a soluçar e o Pedro, assim que chegou ao pé da mãe, começou a contrair-se e a pestanejar como se aí viesse uma chuva de pedras."O QUE É QUE TU FIZESTE!?" E eu caí em mim. Estas pessoas embrutecidas que batem numa criança como quem bate no cão, não sabem que se deve conversar com elas e que há coisas que têm de se ir contrariando porque os meninos não aprendem de repente. Consegui impedir que o Pedro apanhasse na minha frente e quase ordenei à mãe que nunca lhe batesse depois de eu já ter ralhado. Nisto a senhora que estava com o David mostrou-lhe as costas da mão e disse "Pára de chorar! Levas um estalo!" e eu meti-me na frente para perguntar ao David se tinha percebido o que eu tinha dito, ao que ele acenou sem tirar os olhos do chão nem parar de soluçar. "Então pronto. Até amanhã." - disse eu já a fugir para o carro e a tentar conter o choro até ao virar da esquina. Mas não consegui. A mágoa apoderou-se de mim. Tinha de ter feito aquilo. Tinha de proteger a Filipa e de lhes ralhar na hora, sem que ela estivesse a ouvir. Lá fora, as pessoas que me sugerem que dê um par de palmadas aos filhos, estragaram tudo. Tive medo que os meninos ficassem com raiva de mim, mas no dia seguinte já estava tudo bem outra vez. Apenas o meu coração doía, por o mundo não ser perfeito e as crianças pagarem por isso.

7 comentários:

Anónimo disse...

A história de hoje foi sem dúvida a mais dramática de todas as que li aqui - fica a doer-nos o coração um bocadinho também.

O mundo de facto não é perfeito, nem o é nenhum de nós. Mas eu acho que tu agiste bem, Nat; como a mim, a ti é-te natural ficar do lado dos mais fracos, e nem sempre estamos a contar com as injustiças que isso às vezes acarreta.

O mundo é injusto e nós não o conseguimos mudar de um dia para o outro; tu és professora desses meninos e não dos pais deles, paricipas na educação dos primeiros mas não dos segundos. Nesse dia sentiste que causaste uma injustiça, mas não foi assim; e o facto de no dia seguinte estar tudo bem é a prova de que a tua aula é concerteza um raio de Sol nos dias de muitos desses meninos.

Bjinho mto gde,

Ana M.

Anónimo disse...

Querida Natacha, que história comovente! Como entendo as tuas "dores". Acho, sinceramente, que agiste bem.
Beijinhos,
Marta

Anónimo disse...

Obrigada às duas :) Sei que me compreendem.
No dia seguinte o David viu a Filipa fazer qualquer coisa de que não gostou e foi directo a ela dar-lhe um empurrão. Ela veio logo dizer-me "Ó professora, bateram-me!" e eu perguntei-lhe, apesar de ter visto, quem tinha sido. Ela, apesar de ter levado a trolitada do lado direito, apontou para quem estava do seu lado esquerdo, a Juliana. "Foi ela!" Quando olhei para o David ele pediu imediatamente desculpa à Filipa e eu, fiz muita força para não me rir do ridículo da situação.

Sari disse...

Acabei de ler a história a chorar, Nat!
Continua a educar os teus meninos e, ao mesmo tempo, a protegê-los. Eles precisam e confiam em ti.

Anónimo disse...

Também gostei muito desta história, muito comovente e muito verídica, e só me apetece dizer (sem que ninguém nos ouça) que a maior parte dos pais são tão burros que até dá vontade não sei de quê...não se conversa explicando as coisas, é logo à chapada. Sou mãe de um rapaz e de uma rapariga (5 e 2 anos)e tento ser uma boa mãe, umas vezes consigo melhor do que outras. Mas é difícil explicar certas coisas,como a diferença e a igualdade, ou melhor, é-lhes difícil, a eles, compreenderem.

rosinha_dos_limoes disse...

Eles sabem que foste justa ... eles sabem sempre melhor do que os crescidos!

Isabel disse...

eu sei que este post já é antigo.. mas ando a ler o teu blog( e a gostar ;) e por isso não podia deixar de comentar...
se calhar é por estas razões que os adultos têm tanta dificuldade em saber ouvir, se calhar quando eram crianças ninguém parou para lhes falar como tu o fizeste!!!
beijinhos