6 de dezembro de 2011

o que eu gosto de mim

Quando penso nas coisas que já fiz a mim mesma, e que permiti que me fizessem. Quando penso no lugar escuro em que já estive e da força que foi preciso para me reerguer e proteger. Quando penso na falta de esperança. E no optimismo que um dia quase se me sumiu. Tudo aquilo de que precisei para aprender que o primeiro item na minha lista, a coisa mais preciosa que tenho, sou eu mesma. A minha mente, a minha alma, o meu ser. O meu corpo e a minha saúde. Nada se compara à riqueza de simplesmente ser. De decidir livremente e sem medo de julgamentos, o que fazer para ser feliz. Sinto um profundo orgulho do que sou hoje. Todos os dias me esforço por ser gentil e tolerante para todos aqueles com que me cruzo, mas sobretudo e sem hesitação, para comigo mesma.

7 de junho de 2011

rotina

Eight. To. Oxford Circus.

globe road
bethnal green station
barnet grove
brick lane
shoreditch high street station
primrose street (alight here for old spitalfields market)
liverpool street
poultry bank station
bread street
saint paul's station
city thameslink station
holborn circus
holborn circus fetter lane
chancery lane station

Um dia vou saber de cor todas as paragens que o meu autocarro faz. O oito. Trabalho há dois meses e meio numa das muitas lojas do Eat. A 113ª, para ser mais precisa. Um negócio milionário ao qual ainda me estou a adaptar. Onde não há tempo para reciclar a maior parte do lixo, onde o desperdício de comida é assustador, e ainda assim compensa. Mas onde a minha boa disposição e energia são valorizadas desde o primeiro dia, o fraco inglês perdoado, a palhaçada e o tom de voz alto incentivados. Não me posso queixar... adoro. Divirto-me todos os dias. Fui convidada a subir de cargo ao fim de um mês e meio, o que me deixou tão chocada quanto orgulhosa. Vou ser trainer, ao que parece.

Os clientes são incrivelmente simpáticos e muito bem educados. Pouco me importa se há cinismo nos constantes yes please, thank you very much, cheers! E como sorriem! Sorriem, riem, chegam a gargalhar. Talvez a maioria dos portugueses nunca se tenha apercebido de como somos sisudos, até se ver atrás de um balcão a encarar clientes. Depois há o sentido de humor britânico que se pode observar apenas de vez em quando, pois a maioria das pessoas nesta cidade é estrangeira. Pode-se apontar muitos defeitos aos londrinos, mas nunca vi pessoas tão tolerantes em relação à imigração. No nosso café apenas um dos dez funcionários é inglês.

Todos os funcionários são treinados para fazer tudo. Sobreviver ao stress, reagir depressa. Expor artigos, preparar iogurtes, breakfast muffins, cozer pão, bolos e tartes, fazer sanduiches, embalar sanduiches, etiquetar sanduiches a uma velocidade desumana. Desinfectar tudo. Varrer, lavar, esfregar. Restock. First in first out. Pôr sopa a fazer, carregar a sopa para a loja, servir sopa. Gritar hot soup! Verificar a temperatura de tudo o que é alimento. Etiquetar embalagens, operar a caixa registadora, tratar cada cliente como se fosse o único, dar trocos em libras. Fazer cafés. Todos os tipos de cafés, e estamos numa terrinha em que quem bebe espresso só pode ser italiano, espanhol, francês ou (obviamente) português. Aqui bebe-se muito leite (gordo). E chá, de manhã até à noite.

Às vezes tenho saudades de pintar. Especialmente quando vou a museus. Mas é muito bom ser bom noutra coisa, tentar outra coisa e ser-se bem sucedido. Arejar os neurónios, não pressionar a criatividade, não depender da criatividade para pagar as contas, não me preocupar (tanto) com as contas. Apanhar o oito, pensar em inglês, chegar a casa e ter dois amores comigo. O loiro e a morena. Uma família disfuncional na ala Este de Londres, entre muitos homens de turbante, mulheres de burca, alguns esquilos, corvos e a raposa que eu vejo todos os dias às cinco e meia da manhã, no parque da biblioteca.


30 de maio de 2011

Acredito cada vez mais que o que nos define enquanto individuos não requer esforço algum. Não é preciso contar anos de vida, dinheiro, conquistas, memórias. Não é preciso sequer autoconsciência.
A minha avó está a perder a memória. O que começou por ser engraçado, agora é assustador para ela e para nós. O que ela foi, o que ela conquistou, a sua vida e memórias vão-se esfumando. A minha avó desaparece em si própria. Faço-lhe perguntas sobre histórias que ela própria me contou e vejo-a pensar, fuçar no meio do pó da sua mente, angustiada e confusa, até encontrar a resposta.
No dia em que cheguei a Londres com a vida resumida a vinte quilos de mala e me vi numa multidão de 10 milhões de habitantes, comecei a pensar diariamente no que me define. O que é que me define, o que é que me distingue dos milhares de pessoas que também todos os dias chegam aqui com vinte quilos de vida numa mala. Quando retirada do contexto habitual, das minhas pessoas, dos meus objectos, só eu e a minha mente, fico a sós comigo mesma e observo-me com uma nitidez impressionante. Apercebo-me que sou um emaranhado de todas as marcas que me foram feitas por outras pessoas. Sou um emaranhado de gente. Surpreendentemente não me vejo a mim, vejo todos os que por mim passaram e em mim vivem. Sei hoje que a minha avó não é a velhinha confusa que fala comigo no Skype e pergunta a cada minuto se eu estou em Londres. Todos os dias. Todos os dias sou a minha avó. Tudo o que ela já nem se lembra que foi surge em mim em gestos e em expressões que teimosamente vêm ao de cima e dos quais só me apercebo quando já é tarde. E encho-me de amor e vida e esperança, porque sei que a minha avó nunca vai morrer. Está mais viva que nunca, à medida que eu envelheço.
Não sou as minhas convicções, as minhas ideias, os meus projectos, muito menos sou o que gostaria de ser. Sou o que faço aos outros, o que digo aos outros, o que marco de bom e de mau nas minhas pessoas, nas pessoas com quem contacto. Resta-me esperar até me ver definida.


25 de março de 2011

o blog dramático da pintora alérgica a tinta

Londres. Dissemos a nós próprios. Londres, está decidido. Pegámos no recheio da casa, vendêmo-lo, emprestámo-lo, demo-lo. Uma mala de vinte de quilos para cada e voar para Londres, sobreviver em Londres, viver Londres. Porque sim.
Nem toda a gente é abençoada como eu sou, e eu devia lembrar-me disto ainda mais vezes, e agradecer. Não só porque tenho amigos e família que me dizem vai, pais moídos de saudades que ainda assim se oferecem para patrocinar a minha aventura, um namorado que me dá sempre a mão independentemente dos meus delírios, e que todos, mas todos os dias me embala com as suas gargalhadas. Mas porque ainda me restam forças e egoísmo suficiente para perseguir os meus sonhos.
Podia ser em Portugal, em Lisboa, em Viana? Provavelmente. Mas mais provável ainda seria eu ter continuado inerte, sufocada pelas possibilidades, pelas muitas ideias, pelos poucos gestos, pelas perguntas (meu deus se eu parasse de fazer perguntas por um momento), pela incerteza e pelo medo. Haja pachorra para os dramas da vida. Ainda estou para me convencer de que a minha capacidade de adaptação às adversidades é uma qualidade.

Que bom é ter um cérebro. E um corpo saudável que responde, que reage. E que bom é ainda ter energia e juventude para me mexer, para me esforçar e para aprender tanto quanto preciso, enquanto existo. A qualquer momento tudo pode evaporar-se.

Londres é o meu novo amor. E ainda estou na fase do êxtase.