19 de junho de 2016

rosácea

Se um dia um dermatologista te disser que o que comes não tem nada a ver com o estado da tua saúde em geral, e da pele em particular, FOGE!

Antes e depois de cortar completamente com o açúcar e óleos refinados. Toneladas de fruta e litradas de sumos de vegetais depois... é ver para crer: a rosácea tem cura. Custa é assumir a responsabilidade pelo que pomos na boca e pela nossa saúde.

Um ano e meio de distância entre as duas fotografias. Tantos avanços e recuos na minha dieta, e tantos confrontos com os meus vícios alimentares e relação emocional com a comida. Deixar o açúcar foi como abandonar um companheiro de longa data. Mas um companheiro que se revelou venenoso.
Olha eu no meu pior. Esta fotografia foi o Luís que me tirou numa altura em que eu já não me permitia fotografar há muito tempo. Lembro-me de pensar horrorizada Ai que isto só pode ser da luz! mas depois olhei para a pele do meu filho. Pois.

Há que tempos ando para escrever isto. Vou deixar aqui toda a informação que não tinha quando a minha cara estava naquele estado ali do lado esquerdo.
Tudo começou quando decidi engravidar e deixei de tomar a pílula. Umas borbulhinhas mínimas, que não reagiam ao creme para acne como borbulhas comuns. Tipo uma ferida que não sara, perto do olho esquerdo. Simplesmente não desapareciam, e não desapareceram. Foram-se multiplicando e espalhando. Desceram para a bochecha como se algo se passeasse pela minha cara e fosse deixando um rasto vermelho. Depois passaram pelo nariz e para a outra bochecha. Entretanto engrevidei e entrei na minha bolha de hormonas e quis lá saber das borbulhas. E elas, pernas para vos quero, começaram a aparecer em força na testa, agora como acne de adolescente. Umas em cima das outras, enormes, pus, vermelhidão, enfim. Depois o queixo. Coisa pouca mas sim, estavam lá também as tais feridinhas que não saravam. Uma médica que vi durante a gravidez disse-me que já tinha visto várias grávidas com a cara assim, mas fosse o que fosse, não podia usar os cremes apropriados durante a gravidez, por isso era deixar estar.

O meu filho nasceu e as minhas borbulhas continuaram a ser só borbulhas até eu  ir à consulta das seis semanas pós-parto. Foi aí que a médica de família deu um nome ao que eu tinha. Rosácea. Prescreveu-me um creme que usei mas não fez absolutamente nada. Mas comecei a pesquisar sobre o assunto. Lembro-me que quando o Diogo tinha seis meses e introduzimos a comida sólida ele ficou com uma prisão de ventre terrível e eu fiquei num estado de nervos que me rebentou a cara toda. Já só não me restava pele limpa na cara. Por esta altura já sentia também comichão e sensibilidade extrema. Comecei a pesquisar sobre o assunto e comprei um creme 100% natural cujo ingrediente activo era tea tree oil. Porque aparentemente - e aqui tive o momento TCHAN TCHAN TCHAN TCHAAAAAN - este óleo essencial é muito eficaz a matar os ácaros que habitam a nossa pele e que são responsáveis pela rosácea.

Ácaros? Mas ninguém me falou de ácaros, car@$%&! Então pus-me à procura e deparei-me com isto e isto, que são imagens das quais nunca mais me esqueci. E foi aí que a minha abordagem mudou. Comecei por perceber como vivem e se reproduzem estes bichos e resumidamente, é isto:
Vivem no folículo do pêlo e alimentam-se da sua gordura. Não têm ânus e acumulam dentro de si tudo o que comem. Quando morrem, entram em decomposição dentro da pele, pelo que ela fica em estado permanente de inflamação. Se quem está a ler isto já se estiver a coçar e preferir não saber mais, é melhor parar por aqui porque a coisa piora muito. Então vá, beijinhos e até breve!

Os ácaros demodex são foto-sensíveis. Saem dos poros à noite e andam vários centímetros por noite. Procuram com quem acasalar e depois voltam ao aconchego do seu lar, que é onde põem os ovos. Também arrastam a sujidade da pele para dentro do poro, o que não ajuda.
Este vídeo é bastante elucidativo e dá um ar de graça a esta nojeira:



É portanto à noite que se quer lavar muito bem a cara e enchê-la de creme com tea tree. Mas no meu caso a perseguição nocturna com creme transformou-se num filme de terror.
A sobrepopulação já era de tal ordem que as "borbulhas " começaram a aparecer noutros sítios. Agora que já sabemos que a origem das borbulhas tinha mesmo vida própria e se deslocava alegremente pela minha cara, não admira que depois de eu pôr creme num sítio, as borbulhas aparecessem noutro, dias depois. Talvez alguns ácaros morressem, mas os sobreviventes simplesmente fugiam e, dentro duns dias morriam e eu tinha borbulhas novas em mares nunca antes navegados. Creme nas bochechas? Borbulhas nas têmporas. Creme nas têmporas? Borbulhas nas orelhas. Creme nas orelhas? Borbulhas atrás das orelhas. Creme atrás das orelhas? Borbulhas na entrada no ouvido.

Borbulhas dentro do nariz.

Borbulhas no pescoço.

Na nuca.

Nos ombros.

Sim.

Uma vez migrados até aos meus ombros, foi uma festa. Até durante o dia se deslocavam debaixo das alças do soutien. A dada altura tinha desenhadas duas alças de borbulhas vermelhas e dolorosas.
Quando depilava o buço e sobrancelhas ficava cheia de borbulhas dois dias depois. Porque seria?...
Um dia atingi o meu limite e enchi a cara de um produto poderoso cheio de tea tree oil. Sem alternativa, os meus amigos fugiram para os folículos das pestanas. Fiquei linda.

Este pesadelo só  acabou quando eu mudei a minha dieta. Já há meses que tinha visto o documentário Heal Yourself, Heal the World e vivia em sofrimento com a ideia de que podia pelo menos experimentar mudar a minha alimentação, mas sentia-me absolutamente incapaz. E a palavra-chave aqui é AÇÚCAR.

Para começar cortei completamente com o café. Não vi diferenças. Eliminei completamente o glúten, perdi peso e deixei de ter gases. A pele? Nada. Cortei com o vinho, com a comida picante... Nada. Tinha a cara assim há dois anos. Descobri um dente podre e saí do dentista 200 libras mais pobre. Somente quando descobri um nódulo tão grande numa mama que fui encaminhada com urgência para as consultas onde se diagnostiam cancros e afins é que o abanão foi forte o suficiente.
Talvez deva referir que já duas vezes tinha tentado cortar com o açúcar e, talvez mais importante ainda seja dizer que eu não comia um docinho de vez em quando. Eu comia muitos, muitos doces todos os dias. E o que aconteceu das duas primeiras vezes que tentei não comer doces foi que, ao terceiro dia, devorei tudo o que havia de doce cá em casa. Aspirei os armários e senti a saciedade de quem passou por uma sede quase fatal e a quem foi dada uma garrafa de água. Somente à terceira vez consegui libertar-me. Atravessei a pior das ressacas enquanto estava em casa com o meu filho e senti um mal-estar que não desejo a ninguém. Palpitações, dores, cansaço, irritabilidade, desespero. Um desconforto permanente em que os minutos parecem horas. Mas a inflamação da pele reduziu significativamente. Valeram-me os doces veganos feitos com tâmaras, cacau e frutos secos.

Em Abril do ano passado (já há três meses sem açúcar) dei o passo seguinte, quando me comprometi a experimentar uma dieta vegana crudívora, durante um mês. O bem-estar, energia e clareza mental que senti fizeram com que esse mês se transformasse em três, e também a minha pele se transformou.
Entretanto descobri este creme, que ajudou bastante, assim como ajudou mudar a fronha da almofada de dois em dois dias, deixar a camisola do pijama no aquecedor durante o dia e lavar os soutiens a altas temperaturas.
Nos meses que se seguiram tive muitos avanços e recuos, tanto em termos alimentares (sem nunca voltar às guloseimas) como no aspecto da pele. Muitas vezes fiquei extremamente confusa e frustrada por não entender o que fazia com que a pele voltasse a ficar inflamada. Somente há uns meses é que se fez luz.

Numa semana de mais stress comi um saco de amendoins salgados, um frasco de gelado de leite de côco, duas tabletes de chocolate preto (adoçado com stevia) e uma caixa de popadoms. Lembro-me de pensar que depois desses deslizes todos seguidos, alguma coisa aconteceria. E aconteceu. Mesmo usando o creme chinês, a pele de toda a cara ficou irritada, vermelha e cheia de comichão. Se já não era óbvio que a gordura desempenha aqui um papel muito importante, essa semana de catástrofes alimentares pôs tudo às claras. Agora até me parece ingénuo que não tenha visto logo que quando deixei de comer nutella às colheradas directamente do frasco, bolos e chocolates, deixei de consumir não só açúcar, mas também óleo. Foi então que fiz a experiência de cortar em absoluto com o azeite e óleo de côco, abacate e, com muito esforço, os meus amados frutos secos e sementes. Zero gordura durante quase uma semana. E quem me dera dizer que a diferença foi pouca, porque eu sofri tanto para deixar o açúcar, e na verdade o que teve um efeito quase instantâneo foi o deixar (também) as gorduras. A minha pele respirou de alívio. A vermelhidão desapareceu e os poros fecharam. Como é que eu não vi isto antes? Porque não queria ver. Estava confortavelmente alapada nos meus vícios e no facto de a rosácea ser considerada incurável. E, já agora, também nunca tinha ouvido falar da relação entre a cândida (aquele fungozinho da candidíase) e os problemas de pele. Oh mundo novo que se me surgiu! Aqui fica uma breve explicação:



Há pouco mais de um mês deu-se outro acontecimento: comprámos uma centrifugadora e eu inaugurei-a em grande com dois dias de sumos de vegetais e alguns batidos de fruta. Atenção que eu já bebia sumo verde há mais de um ano. Agora estamos a falar de litros de sumo de cenoura, aipo, beterraba, pepino, alface romana, coentros, etc.
Seguiram-se outros três dias a sumos mas também saladas e fruta inteira. Só posso dizer que é preciso experimentar para entender o que nos acontece a nível físico, mental e emocional quando nos metemos numa coisa destas. Desta vez a minha cara ficou completamente limpa e uniforme. Mas assim que reintroduzi o abacate e frutos secos, o nariz voltou a ficar ligeiramente vermelho e passados uns dias, apareceu a primeira ferida, o que obviamente indica que ainda não estou completamente recuperada. É preciso uma enorme motivação para seguir um plano destes. É preciso encontrar outras formas de prazer, de relaxamento, de conforto. E eu neste momento estou prestes a regressar a Portugal, com toda a antecipação que isso implica, mais o desafio de criar um menino de dois anos e meio e todos os comportamentos típicos da idade.

Sinto-me a fazer um percurso em que muitas vezes dou dois passos em frente e um atrás. Há tanta, mas tanta coisa que ainda preciso de observar e mudar. Mas o que isto tudo me tem mostrado é que o que temos como garantido pela medicina tradicional pode, e deve, ser questionado. O nosso corpo tem uma capacidade extraordinária de se regenerar e curar de dentro para fora.

Em defesa dos gordos e preguiçosos, deixo aqui um vídeo muito interessante sobre o consumo de açúcar e o conceito de vício.



E já agora esta entrevista muito interessante com a Fully Raw Kristina, muito famosa na comunidade vegan crudívora, em que ela conta a sua história.



Para quem ficar curioso em relação a este estilo de vida, recomendo vivamente as minhas duas gurus:

A Natacha do Pura Vida

e

a Zlati do Vida em Estado Cru

22 de fevereiro de 2016

sua cabra

Parece que foi noutra vida mas foi só há dez anos. Eu ia à Haagen-Dazs do Norte Shopping e almoçava meio litro de gelado. Dizia que era a morte ideal. Entrar lá e comer directamente da vitrine, até cair para o lado. O melhor alimento do mundo: gelado. Qualquer gelado.

Amanhã faz duas semanas que o meu filho mamou pela última vez. Nem eu sabia que aquela seria a última vez. Mas decidi dizer-lhe, na vez seguinte que me pediu "mai titá" que a titá tinha dói-dói e estava a dormir. Não lhe menti. Na verdade eu estava particularmente cansada e nesse dia tinha os mamilos doridos. Amamentar pode não ser um mar de rosas mas ao fim de quase dois anos e meio parece que somos um. Eu, o meu filho e as minhas mamas somos um e entendemo-nos tão bem. Com esta idade ele já percebe e aceita que eu não queira dar-lhe de mamar porque estamos no autocarro, ou porque bebi um copo de vinho, ou porque simplesmente não me apetece. Assim como é possível ele próprio se colocar em posição no meu colo, levantar-me a camisola, "servir-se", depois dizer que quer a outra, mudar de posição e enroscar-se mais um bocadinho em mim. E ali ficamos. Ele é a personificação do conforto, como diz a Mayim Bialik nesta entrevista. Eu, muitas vezes, sou a personificação do cansaço. Não só por amamentar há dois anos e meio, mas também.

A verdade é que nada mudou para melhor desde há duas semanas. A única diferença é que o meu bebé continua a pedir "mai titá" e eu continuo a dizer que ela está a dormir. "Tem dói-dói?" - pergunta-me. Digo-lhe que não, já está boa, mas está a dormir. Então pede-me colo e abraços de dez em dez minutos, para se consolar.  Come muito mais do que comia há duas semanas. Bebe litros de batidos e sumos de vegetais e água. Pede "mai titá" mais uma vez e eu sinto uma enorme vontade de lhe dar de mamar. Deixá-lo voltar ao seu ritual, ao colinho em que encaixava sem esforço e de olhos fechados, à minha pele e calor, à vacina diária. Tudo aquilo que nunca lhe faltou desde que nasceu. A única realidade que conhecia e que não sabia, até há duas semanas, que acabaria. Eu sempre soube mas ele não fazia ideia. Tirei-lhe a titá, para meu bem. Ele aceitou a justificação e repetiu, sem birras ou desespero, "tem dói-dói". E como sempre, mais nobre que eu, o meu filhinho respeita a minha decisão e atira-se, confiante mas muito carente, para o desconhecido. Um mundo onde ele pede titá e ela não vem. O desmame foi gradual mas o corte foi radical porque me parece desumano abrir uma excepção hoje e amanhã não. Decidir sozinha algo que também é tão dele, confundi-lo, torturá-lo com a expectativa.

Quanto ao meu corpo cansado, ao fim de duas semanas verifico a medo se ainda tem leite. Claro que tem. O meu corpo extraordinário não respirou de alívio e fechou a fábrica. Pelo contrário, parece estar tão confuso quanto o Diogo e parece manter a esperança de reaver o seu bebé, de o nutrir, de voltar a fazer o que fez ao longo de tanto tempo que parece já não saber fazer outra coisa.
Parece que precisamos os três de mais tempo para nos adaptarmos à nova realidade.

Poucas pessoas compreenderão o que sinto. Sofrer com o desmame dum menino já grande. O que tenho atravessado desde que decidi engravidar é outra dimensão. É viver e experienciar a Natureza da forma mais básica e elementar, em cada célula do meu corpo. É vê-lo expandir-se e sentir-me ramificar em todas as direcções e, quando me permito pensar menos e sentir mais, é ser bicho. Ser tão bicho como outro bicho qualquer.

O canal de televisão para bebés que deixo o meu filho ver mostra muitas vezes vacas e cabras a serem ordenhadas. Tal como eu via na Rua Sésamo. "De onde vem o leite?" - perguntam, ao que o coro de vozinhas inocentes responde "das vaaaaaaaaaaacas". Hoje vi uma cabra ser ordenhada e quando olhei para o conteúdo do balde de metal embrulhou-se-me o estômago. Só me ocorria Onde está o bebé? Onde está o bebé? Aquele leite é para um filho que foi tirado à sua mãe. E na ausência do filho, aquele leite é dela. Feito do corpo dela, do corpo confuso daquela mãe que o Mr. Bloom ordenha.
O meu sogro ridiculariza o meu recém-horror ao leite. Passei-me de vez. Ter pena das vacas. Do sofrimento das vacas. Ter pena das cabras, daquela cabra que vi hoje no Cbeebies. Consigo ver-me da perspectiva dele porque há dez anos eu sonhava em me afogar num mar de gelado. Mas dez anos depois vejo-me da perspectiva oposta, por mais ridículo que pareça: da pele duma mamífera. E hoje, quase duas semanas depois, a ver o Cbeebies, vejo-me na pele daquela cabra.


27 de janeiro de 2016

perdoa-me, Dioguinho


Quantas cartas de amor já te escrevi mentalmente e quase nenhuma foi materializada. Não sei bem que tipo de mãe sou eu, que não fiz um album catita a relatar os marcos importantes da tua vida desde que nasceste, mas há com toda a certeza mães mais compostinhas.

Há dias os vizinhos de baixo desataram aos murros no tecto (quem é que chega com o punho ao tecto? O nosso vizinho que mede mais de dois metros) porque já não aguentam mais ouvir as tuas correrias. Várias vezes. Eu senti-me como se os murros tivessem acertado em cheio no meu estômago. Primeiro pela incredulidade, depois pelo choque de alguém decidir que essa é a forma mais eficaz de se dirigir a nós, mas sobretudo pela incompreensão e solidão que senti. Dez minutos depois cruzaram-se connosco na entrada do prédio e enquanto se preparavam para fugir sem nos cumprimentarem, eu e o teu pai demos-lhes uma lição de cidadania e boa educação.

Tive de lhes dizer que tu não páras. Tu não andas - corres. Sempre. Não sossegas e já tentámos tudo e é assim que tu és. Eles têm a infelicidade de viver debaixo desses teus pezinhos que parecem martelos nos nosso chão de madeira e tábuas soltas com mais de 100 anos. Pode parecer que não, quando o prédio todo abana com os teus passos, mas nós tentamos e esforçamo-nos constantemente para que faças pouco barulho. Acontece que tu tens dois anos e uma energia inesgotável. Há crianças que se sentam e brincam sossegadas. Tu não.
Quando a vizinha abriu a boca pela segunda vez para dizer a palavra "consistency" no que se referia à tua educação eu entrei em modo "surdez selectiva". Também eu já fui uma mulher sem filhos que via a super nanny e achava que a educação dum filho estava no papo. Firmeza e pronto. Disse sobretudo que também nós estamos exaustos, também nós queremos dormir e que lamentamos muito por eles também não conseguirem, mas que tu, de nós os cinco, és o único que não sabe ainda expressar-se de forma sofisticada, e que o que temos de fazer é procurar soluções realistas, juntos.

O que eu não disse aos vizinhos, além de que na minha terrinha são uns filhos da puta cobardes e malcriados, é que eles nem sabem nem sonham que todas as nossas certezas caem por terra quando nos nasce um filho. E primeiro achei que desejar que um dia tivessem um filho como tu (para engolirem a seco todos os julgamentos que fizeram) era uma espécie de praga - e isso é feio - mas não. Ter um filho como tu é um desafio maior do que alguma vez imaginámos, mas por incrível que pareça, no meio do cansaço e frustração, eu e o teu pai descobrimos e maravilhamo-nos coisas que nunca imaginámos, sempre. Ter um filho como tu é uma dádiva. Por isso sim, se um dia os nossos vizinhos decidirem ter um bebé, desejo que aprendam, para começar, a ser humildes, e que depois se encham de amor e paciência de sobra. E aí sim, possam ver que assim como não se pode impedir um recém nascido de chorar, não se pode impedir um menino de dois anos de correr. Não se pode forçar um menino como tu a estar sossegado quando bem nos convém, da mesma maneira que não se pode convencer um menino sossegado a começar a correr às seis e meia da manhã e parar às oito horas da noite. Que é o que tu fazes, com um intervalo de uma hora para sesta tua e recomposição minha.

Também não disse aos vizinhos nenhum daqueles clichés que todos ouvimos mas só fazem sentido depois de se ter um filho. Um deles é que aprendemos muito mais do que ensinamos. Nesse dia, depois da conversa acesa com eles no hall de entrada, tu foste dormir a sesta muito mais tarde do que era suposto. Estavas tão cansado e ansioso com o estado em que eu fiquei, que não conseguias adormecer. E eu só queria que dormisses. Fomos pela rua fora comigo a torcer para que adormecesses no carrinho antes de chegarmos ao café, mas não. Tentei manter-me calma e paciente mas não consegui ficar a dar-te mais beijinhos nas mãos quando me pediste que continuasse, e quando deste um grito de frustração e exaustão, eu dei-te um grito também e deitei-te à bruta, e fiz-te chorar ali no café, e foi o teu pai que teve de te pôr a dormir. Quando acordaste, ainda mal tinhas aberto os olhos, eu aproximei a minha cara da tua para te dizer que te queria pedir desculpas, e antes sequer de o fazer, tu já me estavas a dar um beijo. E quando te perguntei, para confirmar, se me perdoavas, respondeste depressa e baixinho: ja.

Obrigada, meu filhinho. E perdoa-me, por favor, por eu não conseguir ser tão nobre como tu. Perdoa os meus gritos e impaciência. Nunca tenho a certeza se te digo mais vezes que te amo e como és maravilhoso do que as vezes que ralho. Sei que provavelmente os nossos vizinhos vão ter um filho mais calmo que tu e vão continuar cheios de razão e verdades absolutas. Mas vão perder a oportunidade de ver o mundo e se ver a si próprios duma perspectiva que tem tanto de assustadora como de encantadora. Vão viver sem saber o que é ouvir para além do barulho irritante das correrias, amar para além da raiva, sorrir para além das lágrimas. Azar o deles, meu amor querido. E sorte a nossa.

23 de setembro de 2015

Agradecer: dia 23

Super Papa de folga = um dia mais doce.

Anunciar a um menino de dois anos que vai andar de comboio e ver o que é ser feliz no caminho todo até à estação.

Mafalda + Dinis = Amor

Rir às gargalhadas com os postais numa papelaria e achar que não vou sobreviver sem o humor britânico, no dia em que nos formos embora. Comprar três.

Fazer um bolo quase vegan (não fosse a margarina) para a Emma. Amanhã levo-lho, com um dos postais.

O desodorizante caseiro funciona!

22 de setembro de 2015

Agradecer: dia 22

Falámos com a minha mãe no skype.

A chuva parou e fomos sair. No parque apareceu uma nuvem preta e recomeçou a chover e, mais uma vez, quando eu estou aflita a tentar pôr a capa de plástico no carrinho e salvar as compras o mais depressa possível, o meu filho ensina-me que chuva também é água, com aquele sorriso de orelha a orelha e a cara molhada.

Fiz este desodorizante e amanhã começo a usá-lo.

em defesa dos não-veganos

Entrei para pedir um café e me sentar na esplanada enquanto o filhote dormia. No balcão havia amostras de brownies, aos pedacinhos, e eu pus uma na boca imediatamente. Só depois de engolir me passou pela cabeça que aquilo não teria só açúcar, que era o ingrediente terrível que eu me estaria a permitir ao fim de meses de restrição. Manteiga, ovos, tudo o que também não como há meses, mais por amor aos bichos que a mim própria, também ali estavam e isso nem me passou pela cabeça. Porque um brownie é um brownie. É chocolate. Um brownie indefeso em pedacinhos ali em cima do balcão, de graça, não pode esconder o rasto de sangue dos milhões de animais que morrem diariamente às nossas mãos e bocas. Ou pode?

Nesse momento arrependi-me um bocadinho dos anos em que fui uma vegetariana zangada, cheia de pedras na mão, cheia de razão. Mas a maioria das vezes em que compreendo o que os não-veg(etari)anos-que-também-gostam-de-animais passam não tem a ver com comida. Tem a ver com sentir. Aliás, com não sentir.

Se ando pela internet e vejo fotos de Lisboa faz-se-me um nó no estômago. Basta-me ver casas de cores pastel. Ou uma ruela com portas tipo Alfama. Saio da página, minimizo, faço o que for preciso para não ver. Não sentir. As saudades que sinto de Portugal são indizíveis. E se eu mas permitisse sentir, viveria a chorar e a inventar outras razões para voltarmos o mais depressa possível. Não me permito. Recalco-as para as profundezas da minha alma, onde o coração não sente. Ocupam, comprimidas, o espaço dum grão de areia, no meu cérebro caótico. Volta e meia uma lembrança faz-me tropeçar nelas, e é como se abrisse um armário gigante onde enfiei à bruta todo o meu amor pelo meu país, pela Lisboa que me adoptou, pela minha Alfama. Resvala tudo para cima de mim. Agora o nó é na garganta.
Fascinam-me estas coisas da mente humana. Estas coisas que descrevo por imagens porque sou pintora e que me inquietam porque já fui uma doente mental. Como é que a nossa mente é tão incrivelmente capaz de apagar o que nos causa desconforto? É aqui que quero chegar. Da mesma maneira que também eu já vi num bife apenas um bife, e não uma vaca (alguma vez eu comeria um dos meus animais favoritos?!), da mesma maneira que comi aquele pedacinho de brownie e não os ovos e manteiga, dessa mesma maneira que o que era comida e não podia ser outra coisa, hoje, as saudades são só uma palavra. Não as penso e não as quero sentir. Dessa mesma maneira que não quis sentir durante anos que os ovos e os lacticínios são tão maus ou piores que a carne e peixe. Recalquei e comprimi para aquele mesmo cantinho escuro do meu cérebro a visão daqueles animais e a informação, os factos, os vídeos disponíveis que rebentam pelas costuras da internet e que estão à distância de um só clique, para que qualquer pessoa que se quiser permitir ver, se permita também sentir.

Sempre que me passa pelos olhos uma imagem de Lisboa, toda céu azul e luz, lembro-me dos dias em que comia gelados e gelados eram só isso mesmo. Até que em vez de pensar duas vezes, senti.

olha como chove, Dioguinho

E chove, caralho, como chove! - é o que penso.

Há dias fiz uma sessão de yoga puxadinha. De que me vale a flexibilidade herdada da dança e ser pseudo-espiritual, se durante aqueles trinta minutos não consegui respirar direito uma vez e o único mantra que consegui repetir foi foooooda-se?

A minhota que há em mim não morre, nem sequer adormece, quase cinco anos depois de pôr os pés em Londres.
Não, os meus pais nunca falaram assim lá em casa. Acho que os palavrões vêm nos genes. E assim sendo, temo por meu rico filho, porque se há palavrões e insultos feios, são os holandeses.

21 de setembro de 2015

Agradecer: dia 21

Sumo verde em jejum.

Todos os dias escovo a pele a seco e orgulho-me de manter esse hábito.

Fiz a depilação. Hidratei a pele dos braços com óleo de côco. Senti-me muito gaja.

Conseguimos manter o bom humor, eu e a cria, apesar da chuva que nos manteve em casa até às seis da tarde.

Começou a chover e o Diogo adorou. Aliás, o Diogo adora tudo: chuva, sol, vento. Tento aprender com ele.


Agradecer: dia 20

O meu filho cresce a cada minuto que passa.

Fazer planos com o meu amor.

Falar com a família no skype.

Terminar o dia a ouvir uma mensagem de voz vinda do outro lado do mundo, em que a Paz nos diz que vêm cá em Novembro.

19 de setembro de 2015

Agradecer: dia 19

Mercadinho do costume. Kale e swiss chard para o sumo verde.

Cria adormecida no carrinho = progenitora a esplanar e desenhar = ideias frescas.

Passear com os meus dois amores no parque e no bairro. Rir-me deles.

Sushi cru sushi cru sushi cruuuuuuuuuuuuu!

Agradecer: dia 18

Ir à estação a pé com o Diogo. Pára para cumprimentar um menino, dança para ele, faz rir um senhor que os vê mais à frente. Dança para o senhor. Diz olá a mais pessoas, feliz da vida porque sabe que vai ver comboios.

Que bom é ir ilustrando mentalmente o novo livro.

Ir para a cama cedo.

17 de setembro de 2015

Agradecer: dia 17

Almoçar com o meu amor.

Desenhar durante a sesta do filhote. sentada numa esplanada com o sol possível, a beber o melhor cappucino da minha vida. Foi tão bom ter aquele momento a sós com a minha criatividade, mais o café (que nos dias que correm já não é um hábito ou necessidade diários, mas sim um prazer que me permito de vez em quando, o que lhe dá todo um novo sabor), mais o solinho. As ideias florescem a uma velocidade alucinante. É dar-lhes espaço e atenção, e ramificam-se. Ganhm vida própria.

Sentir dores por todo o corpo, que me lembram que este mesmo corpo tem 33 anos e meia hora de yoga é suficiente para despertar partes dele de que já não me lembrava.

Pensar cada vez mais no meu livro novo.

Agradecer: dia 16

Fiz yoga!

Falámos no skype com a minha mãe, a Bibinha, a Lu e a Gabi. Ver a adoração que o Diogo tem por elas.

Sumo verde do meu coração.

15 de setembro de 2015

Agradecer: dia 15

Beber spirulina e já não ter vómitos.

Rir-me muito com as danças que o meu filho faz quando está feliz.

Encontrar um site em que é facílimo escolher calçado vegetariano. Comprar umas botas.

14 de setembro de 2015

Agradecer: dia 14

Não ler ou ver notícias traz mais vantagens que desvantagens.

Fiz um mini donativo para a iniciativa da Pipoca.

Bebi sumo verde em jejum. Parei para olhar para uma folha de yellow chard e achá-la digna de uma fotografia, antes de a cortar. Susurrei-lhe um obrigada.

O Faneca meteu meia folga para irmos ao hospital com o Diogo, à consulta do bracinho. Fomos atendidos imediatamente, tudo bem com o bracinho, Papa só para nós para o resto do dia.

Fiz sushi cru e cada vez mais acho que sou das melhores cozinheiras que este planeta já viu.

Sumo de vegetais ao final da tarde, desta vez com beterraba e kale, que o transformaram em sumo tinto. Ouvi o meu bebé repetir "hummnham-mai!" várias vezes.

Penso no meu próximo livro.

Agradecer: dia 13

Ver o Diogo a falar com a minha mãe e a minha avó no skype.

Namorar.

Acabar de cortar o meu cabelo. Tinha começado há mais de um mês.

Quando já só tinha intenção de vegetar em frente à televisão, ri-me até ir às lágrimas com um "Come Dine With Me" com jogadores de rugby famosos.

13 de setembro de 2015

Agradecer: dia 12

Um Sábado em que o Faneca não trabalha é sempre um Sábado melhor.

Desenhei um bocadinho.

Sol no parque. Babyfaneca descalço.

Descobrir uma esplanada nova, linda. Almoçar com o meu amor enquanto a cria dorme. Pedir para trocarem o feta da salada por hummus e ouvir um sim.

Vegetais do farmers' market. Pepino com casca.

Receber uma prenda da Marta.

11 de setembro de 2015

Agradecer: dia 11

Grata pelos dias que começam maus mas acabam bons.

Sol.

A minha melhor amiga ainda me conta segredos.

Sentir a alegria dos outros como minha.

Encontrar-me com a Mafalda e o Dinis e não ver o tempo passar.

Todas as coisas novas que o Diogo diz e me fazem sorrir. Há uns tempos ouviu-me dizer foda-se e repetiu muito bem. Felizmente o choque impediu-me de repetir a proeza por tempo suficiente para que ele esquecesse o sucedido. E a palavra.


Agradecer: dia 10

Sol, sol, sol. Sol quente que nos obrigou a tirar os casacos quando estávamos a ver comboios.

Ver o Diogo a brincar com outros meninos (ao sol) na areia. Aprender com as crianças e com a forma como são firmes mas gentis.

Bananas bananas bananas. 20 bananas maduras por uma libra.


9 de setembro de 2015

Agradecer: dia 9

Finalmente estou em dia com os posts de gratidão.
Hoje almoçámos com o Faneca. O Dioguinho viu a sua amada Lili, a funcionária portuguesa do café do costume. Passa o almoço todinho a chamar por ela.

No regresso a minha cria adormeceu. Quando chegámos ao nosso bairro estava sol e sentei-me numa esplanada onde tomei o melhor single-shot-soya-cappuccino de todos os tempos.

Chegada a casa ainda tive tempo de fazer uma sobremesinha , comê-la e sentar-me a desenhar para o próximo livro.

No parque infantil estava um casal amoroso a brincar com a filha de cerca de 3 anos. Nenhum deles tinha um smartphone na mão. Estavam inteiramente com ela e com os dois peluches cor de rosa que ela carregava para todo o lado e que atirava escorrega abaixo, antes de se lançar também, ao som das celebrações dos pais.

Apanhei urtigas e pu-las no sumo verde. Baby Faneca bebeu imenso.

Germinei trigo e sementes de abóbora e girassol. Pu-las numa caminha de terra e aguardo que cresçam.

8 de setembro de 2015

Agradecer: dia 8

Fui com o baby Faneca a uma sessão de música e brincadeira no centro comunitário da nossa freguesia. Descobri que afinal o meu filho não é um selvagem. No máximo é silvestre.
À saída descobri o que eles chamam de "swap shop". Prateleiras e mais prateleiras de roupa e calçado de criança. É só pegar e trazer. E deixar lá algo, se quisermos. Adorei, adorei, adorei.

Aceitei que é Outono e isso trouxe-me uma paz profunda, quando me vi no parque infantil quase vazio, o Diogo de casaco de inverno e mãos geladas, mas ainda assim muito feliz e ocupado a brincar com a areia.
Aceitei que o aquecimento central de cá de casa já se ligou quatro vezes e agradeço por ter uma casa que está sempre quentinha.

Como não agradecer por, todos os dias em que vou comprar fruta, vir de lá carregada com as bananas super maduras que ninguém quer, de borla, ou por uma libra?

Agradecer: dia 7

Fui ao hospital tirar sangue. Avisaram-me que teria de esperar mais de uma hora, então fomos para o parque que há mesmo ali ao lado, onde o Diogo encontrou uma "paddling pool". O sol esteve solidário e permitiu que o meu filho chapinhasse à vontade, sem calças e descalço, enquanto o resto da roupa secava no chão.

O meu filho parece um comediante, na forma como ouve e imita na perfeição o que as crianças inglesas dizem. Ri-me para dentro com a imitação duma menina a chorar, e para fora com um "mummy mummy mummy".

Todas as pessoas com quem me cruzei no hospital foram simpáticas.

Agradecer: dia 6

Um dia de Verão! Começou com 8 graus, mas aqueceu e fomos esplanar.
Lugar na esplanada favorita. Bebé adormeceu no carrinho e os pais puderam morenar (o pai grelhou) e almoçar ao sol.
Fomos ao parque e rimo-nos com o Diogo a tentar levantar a camisola de outro menino para lhe ver a barriga e costas. Os pais do menino também se riram.

Agradecer: dia 5

Fomos ao mercado comprar vegetais orgânicos para o sumo verde. Tudo merece gratidão nesta simples frase. Termos um "farmers' market" aqui no bairro todos os sábados, podermos comprar folhas verdes escurinhas, o meu filhote adorar sumo verde e bebermos uma litrada quase todos os dias.
No regresso passámos no Jared e ele deu uma banana e uma nectarina ao Diogo.

A Anna, a nossa funcionária favorita do café favorito, ficou nossa amiga. Derrete-se com o babyfaneca e ele tem uma adoração por ela ainda maior que pelo Jared.
A Anna enviou-nos uma mensagem meiguinha e doce, como sempre, a despedir-se antes de ir de férias.

Falei com a miPrimi ao telefone e agendámos uma sessão de skype.


7 de setembro de 2015

Agradecer: dia 4

Fui à Dra. Payne pedir análises. Maravilhosa como sempre. Elogiou-me por ainda amamentar o meu bezerro, disse que eu estava com óptimo aspecto, ouviu horrorizada e sem me despachar a história da rosácea e os ácaros e ainda ouviu sem cair da cadeira que eu me tenha tornado crudívora, mesmo havendo dias em que como 10 bananas. Haverá médico tradicional que consiga aceitar isto? Sim! A maravilhosa Dra. Payne.

Continuar por email as conversas que tinha com Ana no facebook.

Ouvir a voz da Di.

Ao passear com o Dioguinho no parque, neste Outono que se faz sentir, o sol aparecer glorioso vindo de trás das nuvens pretas, por uns segundos.

5 de setembro de 2015

Agradecer: dia 3

Faz dois anos que o Diogo nasceu. O dia mais feliz da minha vida. Recebemos telefonemas, mensagens, emails, postais, pacotes. Sentir que não estamos sozinhos nesta ilha em que é Outono.
O Faneca esteve de folga para passarmos o dia a fazer as coisas favoritas do Dioguinho:
1. Ir à estação e ficar na plataforma a ver comboios passar até se fartar.
2. Ir ao parque, calçar as galochas e voltar com lama até aos olhos.
3. Ir ao supermercado e ser empurrado pelo pai no carrinho a alta velocidade pelos corredores fora (enquanto eu sou a única dos três que se comporta civilizadamente a comprar vegetais e fruta). Um dia o segurança vem falar com eles. Nesse dia eu enterro-me no meio dos bróculos.
4. Encontrar no supermercado a prenda ideal: um conjunto de duas tendas com um túnel a uni-las do filme Frozen, que nunca viu mas cujo video e música "let it go" ele adora e sabe de cor e salteado.
5. Ir ao bairro ver os amigos das lojas do costume. Enchem-no de mimo.
6. Falar numa cabine telefónica com o pai. O Faneca liga para a cabine e o Diogo atende.
7. Ver o Jared (o rapaz da fruta), receber uma banana de prenda, colinho para tirar uma fotografia com o amigo e despedir-se com um beijinho.
8. Cantar os parabéns com bolinho gelado de fruta, decorado com bagas goji.
9. Vestir a bata e comer o bolinho sozinho.
10. Falar no skype com a família.

4 de setembro de 2015

Agradecer: dia 2

Receber (montes de) fruta de borla sempre que vamos comprar fruta. E ver o rapaz da fruta e o meu filho nas suas conversas do costume, cheios de um carinho e duma cumplicidade que derrubam a barreira da língua.

Falar com a Raquelita no skype ir gargalhar como quando estamos juntas.

Agradecer: dia 1

Desliguei o facebook. A conta pessoal. Sinto muitas vezes que a minha maneira de ser, de pensar e de sentir são diferentes da maioria das pessoas. A minha mente é compartimentada e o espaço disponível é limitado. Vejo-a com caixas, gavetas, prateleiras. Se libertar o espaço que o pasmar na internet durante cinco minutos (duas horas?) ocupava, o que é que acontece?
Perguntei-me para onde olharia eu se parasse de olhar para o monitor deste computador ao longo do dia. Se simplesmente pusesse música ou uma palestra ou um comediante a falar. O facebook anestesia-me da mesma maneira que um chocolate me anestesia. Na quantidade certa é um prazer. Para além do prazer é tentar preencher um vazio que coisa nenhuma preenche. E eu andava a ficar pegajosamente colada ao facebook, sobretudo nos momentos de maior frustração, nervos, aborrecimento, medo. Distrair-me o mais possível do problema, em vez de o resolver.
Desligar-me do facebook é parar e olhar à volta. Peguei num espelhinho e vi as minhas sobrancelhas por depilar. E o cabelo por pintar. Depois desses assuntos resolvidos a minha mente esvaziada cheira menos a mofo e há mais luz. Há espaço para pensar no próximo livro. Há espaço e energia para fazer yoga. Há nitidez porque há menos pó no ar.
Uma das minhas resoluções de ano novo era agradecer (por escrito) todos os dias. É Setembro e ainda não o tinha feito. Nem mesmo no facebook.

Dia 1.
A Cila ligou-me. Contou-me dela e eu contei-lhe de mim. Falou com o Diogo no alta-voz. Rimo-nos. Trocámos declarações de amor antes de desligar.

8 de agosto de 2015

ele tem uns olhos azuis...

... disse o avô Martin. A frase que ouço desde sempre. Tentei explicar que não os vejo azuis. Não vejo esse bebé dodot que as pessoas tanto me descrevem, que quando era pequenino e íamos no metro vinham pelo menos três senhoras dizer-me como ele era lindo, lindo, que lindo bebé. Uma vez disseram-me que ele era divino(!?). Percebo a intenção e agradeço de coração, mas e as mães de bebés feios? Que sentem elas quando vêem e ouvem isto? Só entendi mais de um ano depois. Foi ao ver fotos dele que vi isso. Aquela cara e olhos, aqueles olhos azuis.
Disse ao avô que eu não os vejo azuis e deixei-o a pensar se serei daltónica. Expliquei que quando olho para ele é como se olhasse para mim. Não olho para o espelho e penso "os meus olhos são verdes"- simplesmente olho. Só isso, e o facto de não ser muito boa da cabeça, pode explicar que ontem no parque infantil e ao sol eu tenha olhado para a multidão e pensado "Irra quanta criança loira! Onde está o meu filho?" como se ele fosse moreno. Depois vi a juba a reluzir.

31 de julho de 2015

esplanar

Empurro o carrinho colina acima, digo ao Dioguinho que se encoste para trás e tapo-o com o cobertorzinho. Se tudo correr bem, adormece pouco antes de chegarmos ao meu café favorito e terei uma hora de esplanada só para mim. Peço um sumo de cenoura, deixo um fundinho para quando ele acordar e permito-me a batota na minha dieta desintoxicante: um descafeinado cheio.
O ruído é quase nenhum quando ele adormece e eu tenho um caderno nas mãos e uma lista na cabeça. Os meus planos mais importantes e ambiciosos, como publicar o próximo livro, agendar uma sessão de yoga, arrumar o meu guarda-roupa, cumprir as resoluções de ano novo... isto sou eu a tentar reconstruir o meu ego, pedacinho a pedacinho, cada caco em busca dum encaixe. Cola nos dedos, nas mãos, por todo o lado. Uma doente mental em recuperação contínua.
Mas ali na esplanada, diante de mim e a tornar impossível a simples tarefa de fazer uma lista estão três mães. Cada uma munida de seu bebé rechonchudo e vivaço. Eu agarrada aos meus cacos, tento concentrar-me (já só tenho menos de uma hora) e da mesa delas vem uma conversa que me é tão familiar que é impossível não ouvir. Falam do sono, das mamadas noturnas, da papa que dão, da marca da papa, das lentilhas em puré, da mama e do biberão, da roupa, daquela vez em que a bebé fez cocó até às costas e durante a muda de fralda vomitou e ficou toda suja de cocó e vomitado. Fazem muitas perguntas umas às outras e tentam fazê-lo de forma descontraída e casual. Pelo meio riem-se e falam com os bebés naquele tom típico, pedem desculpa às mesas vizinhas porque eles palram alto e têm tanta coisa importante para dizer. Acho que se conhecem há pouco tempo. Tentam mudar de assunto mas não conseguem. Resvala sempre para o mesmo. Não se calam por um segundo e eu ao fim de trinta já não estou só entediada, estou com muita pena de não ter trazido o ipod do Faneca. Olho à volta e pergunto-me se as outras pessoas sentem uma repulsa tão grande quanto eu. Se o facto de eu também já ter tido um bebé de oito meses me faz mais tolerante, ou pelo contrário. Acho que pelo contrário. Mas de repente apercebo-me porque me incomoda tanto aquilo tudo. E a repulsa que sinto dá lugar a uma enorme compaixão e faz-se-me um nó na garganta. Nenhuma fala de si própria. Nenhuma sabe falar de mais nada. O ruído que ouço para além do riso e alegria e luz do sol e bebés é um estilhaçar contínuo, um ranger, um esmigalhar dos cacos delas. Dos egos soterrados delas.

Volto aos meus cacos e à minha lista. Já consigo pensar e escrever. Já consigo ver-me outra vez. Rio-me para elas e para os bebés lindos que têm ao colo. Acabo a lista antes do meu bebé acordar.

28 de junho de 2015

tu

Fez há uns dias 32 anos que nasceste. Do alto do meu egoísmo, senti-me muito grata a esta vida e aos teus pais por teres nascido, te ter um dia encontrado e todos os dias dos últimos cinco anos e tal acordar ao teu lado. Estava a lavar as mãos (a mão) ao teu filho e a redigir este texto mentalmente, mas comecei a choramingar e tive de parar.
O Diogo caiu daquela altura toda e partiu o braço. Podia ter sido muito pior, como sabemos, e ainda assim, apesar de toda a minha culpa, da tua boca só vêm palavras de tolerância e carinho. É assim desde sempre. Lembro-me de comer uma litrada de gelado como almoço, e depois bolachas ou chocolate, e sentir que só podia fazer isso ao pé de ti sem sentir o menor constrangimento. Diz o Stephen Fry "You are who you are when nobody's watching." e sendo assim, eu sou tão eu, quando estou contigo. A comer merdas há uns anos atrás, a comer alfaces e sementes hoje. A ter crises existenciais sem fim. A perder a paciência e gritar com o nosso filhinho. Nestes dias ainda mais difíceis em que tenho de ouvir as perguntas e comentários das pessoas preocupadas com o bracinho do Diogo, refugio-me no teu silêncio tão sábio. Ensinas-me tanto sobre a importância de não dizer nada. Quando estava grávida e redonda e todos à minha volta me diziam para parar quieta e me sentar, tu eras único que me deixava completamente em paz. E era o teu bebé que eu carregava no meu corpo desassossegado. Tento aprender contigo a ser boa companheira e rezo para que sejas tão tu quando eu estou presente, como quando estás sozinho, porque isso é profundamente libertador. Acontece é que sinto que contigo eu sou melhor que eu própria.
Uma das melhores coisas desta vida é ver o 8 out of 10 cats contigo e passam-se minutos de silêncio até que um deles lança uma piada que nos faz gargalhar ao mesmo tempo. Para mim, a gargalhada é o que melhor nos une. Quando o cansaço já é tal que eu sinto que vou ter um colapso, mas não posso porque há um bebé a pedir-me mais um sorriso e mais um colinho e quando por fim ele adormece e então eu posso colapsar, ou quando a dor de costas é da nuca aos calcanhares, sinto que não é justo não ter uma réstia de energia para demonstrar melhor o que sinto por ti. És o melhor que a vida me deu. Fica aqui esta lição de português, está bem? Quando eu te disser que te amo muito, não é só isso que eu quero dizer. É isto tudo.

ontem, no facebook

Dioguinho, meu filho. Hoje o facebook encheu-se de arco-iris porque nos EUA o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado. Eu só soube porque vi os tais arco-iris. Não vejo as notícias, não leio os jornais e nem acho, como muita gente, que os EUA são o centro do mundo. O centro do meu mundo neste momento és tu. E eu desejo que tenhas a sorte de encontrar alguém como eu encontrei o teu pai. Alguém que à medida que conheceres, penses "isto é bom demais para ser verdade" e que se revele ainda melhor do que isso. Te faça ir às lágrimas de tanto rir, que seja cúmplice, que te faça sentir mais feliz e seguro de ti próprio do que se estivesses sozinho. Mas sobretudo alguém que ames, que ames muito muito muito. Que possas abraçar e beijar muito, com toda a liberdade que o amor merece. E se quiseres casar (eu e o teu pai até nisso somos parecidos - não temos o sonho de casar), então casa, querido. O amor tem de ser celebrado. É urgente que se celebre e ridículo que se "legalize" o amor. 
Escrevo-te aqui e agora porque se um dia eu ficar mais parva do que sou hoje e me insurgir contra ti por expressares o que és, e calhar de não seres um "comum" heterossexual, então ignora-me. E já agora perdoa-me. 
Hoje gritei contigo porque a minha paciência, infelizmente, é finita. Se há uns anos me dissessem que eu seria uma mãe que grita, eu não acreditaria. Hoje digo que nunca discriminarei um filho pela sua orientação sexual. E sinto uma paz profunda por teres nascido na segurança duma família que te ama e tolera, te acolhe no teu todo. Mas se alguém um dia te fizer sentir desajustado ou inferior por expressares algo que no teu íntimo sentes que é verdadeiro e bom, se alguém alguma vez tentar convencer-te de que a natureza não te fez perfeito e que o teu corpo não é só teu, mesmo que essa pessoa seja eu, por favor ignora os insultos e protege-te. E se quiseres casar, meu filhinho, casa!

23 de junho de 2015

caiu do escorrega

Caiu de uma altura de mais de um metro, desamparado. A minha alma partiu-se como um vaso vazio. 
Há uns tempos uma blogger lançou um livro sobre todas as coisas que nunca ninguém lhe disse sobre a maternidade e as mães histéricas cairam-lhe em cima. Haja pachorra para as mães histéricas. O meu filho tem 21 meses e ainda mama, passa mais de metade da noite na nossa cama, isto e tantas outras coisas que vou partilhando no facebook com os meus amigos (parto humanizado, parto na água, parto sem drogas, parto parto parto) fariam de mim uma dessas mães extremosas e histéricas, não fosse o eu saber o que é ser criticada quando me desfaço em mil para dar o meu melhor e isso nunca, mas nunca ser suficiente. Se há coisa que a maternidade me trouxe foi tolerância. Para com o meu filho, para comigo mesma, para com as outras mães. As que pariram anestesiadas num bloco operatório, as que não quiseram dar de mamar, as que deixaram o bebé chorar no escuro, as que gritam no supermercado, as que ameaçam castigar, as que ameaçam bater, as que batem. Falar é tão fácil, teclar é facílimo.
Disse-me uma vez uma amiga que quando somos mães de um, somos mães de todos, e isso é cada vez mais verdade para mim. Caiu do escorrega e eu nem sequer fui a primeira a lá chegar, nem a segunda, que as mães voam quando um bebé cai. Passaram-mo para as mãos, revistei-o e abracei-o e ali ficámos no meio do chão, ele aos prantos e eu a tremer. Nenhuma mãe histérica se aproximou de mim, ora pois, que o anonimato não é possível num parque infantil. Pelo contrário, só vi olhares de compreensão, só recebi palavras de conforto. Mães de um, mães de todos. Mães desfeitas em mil. E mil não é suficiente.
Vivo 24 horas por dia com o meu filho. Tenho muitas vezes a certeza que quem inventou a tortura do sono foi uma mãe. E quem inventou as creches também. Digam-me o que quiserem. Neste momento só acredito que as creches e infantários foram inventados por pais à beira dum ataque de nervos a precisarem desesperadamente de um momento sem filhos. Só é pena que não o admitam. A culpa levou-os a defender que os meninos precisam de socializar, de brincar com outros meninos, de ser independentes. Sim, sim. Como se tudo isso não fosse possível com os pais por perto. O que os pais precisam é de se recompor. É isto que eu vejo e sinto. Vejo-me fragmentada. Já várias vezes na minha vida passei por isto de me sentir desfeita. Desfeita (pulverizada) com o maior desgosto de amor da minha vida. Desfeita mentalmente com um esgotamento. Desfeita emocionalmente com uma depressão. Mas isto de ser mãe é permanente. É olhar para o espelho e ele estar todo estilhaçado. É ver-me em mil pedacinhos e não saber qual deles sou eu, qual é o meu filho. O Diogo é um pedaço de mim que vive cá fora e isso é tão confuso que às vezes tenho muita dificuldade em pensar. Em me concentrar. Em me ver. A gravidez prepara-nos para este abalo sísmico do ego. O ser dois em um. Outra teoria que cá guardo é que não é por acaso que carregamos o bebé nas entranhas. E não é por acaso que esse invólucro sagrado se abre e rasga com carne viva, sangue, suor e lágrimas à mistura. Porque isso é só um vislumbre do que se avizinha.
Ninguém nos diz das muitas coisas horríveis de ser mãe ou pai. Ninguém diz porque na verdade não vale a pena. Pensávamos que seria difícil, e na verdade é quase impossível. Pensávamos que seria bom, e na verdade é muito melhor. É maravilhoso e compensador de formas que nunca imaginámos. É olhar para o espelho todo estilhaçado e na maioria das vezes ele ter o encanto hipnotizante dum caleidoscópio.



3 de junho de 2015

um ano e nove meses

Vinte e um meses, hoje.
Perco a paciência e levanto a voz (às vezes grito, raramente, mas grito) mais vezes do que queria. Culpo o facto de estarmos juntos vinte e quatro horas por dia há 21 meses. Às vezes dava-me muito jeito ter alguém com deixar o Dioguinho nem que fosse por uma hora, para o bem de ambos. De resto, fascina-me isto de ser mãe e de ver de perto um bebé tornar-se gente. Não trocava o que tenho por nada. Só pelo mesmo com um pouco de babysitting.

Não é correcto chamar filhos da puta aos dentes do meu filho, mas é isso que lhes chamo. Desde que começou esta coisa rara (pelos vistos é raro sofrer-se tanto como o Diogo sofre com a vinda dos dentes) que as nossas noites sossegadas passaram a um número de circo executado por dois adultos exaustos e um bebé desesperado de dores, entre uma cama de casal e um berço, uma mama de fora, ou as duas e - rufam os tambores - respeitável público, até à data, ninguém caiu ao chão!
Como dizia, os molares do meu filho estão a caminho. No dia em que ele tiver todos vinte dentinhos de fora, faço a festa que não fiz no aniversário de um ano.

Não sabe o que é bolacha maria. Nem comida processada. Quer sempre provar o que eu estou a comer. Come quando quer, o quanto quiser, de maneira que quando tem fome, come como um adulto. E graças aos dentes de que tanto me queixo, come coisas que nunca pensei que gostaria, como uvas passas, tâmaras, bagas goji e figos secos. São as guloseimas dele. Continua a adorar bróculos e legumes em geral. Um dia quis provar salada e até eu fiquei pasma quando pediu para repetir. Era couve roxa, aipo, cebola, cenoura, salsa... tudo marcha. E não engorda. Abacate com outras frutas, batidos e papas com leite de amêndoa e sementes de chia, sumo verde cheio de couve, pepino, salsa e coentros. Uma coisa boa de ser ver. A não ser que estejam para vir os dentes, claro. Aí quer é o xarope para as dores e mamar de hora em hora. E morder todo e qualquer objecto.

Já várias vezes achei que ia enlouquecer. Mas a Natureza é sábia e dotou-nos duma amnésia selectiva muito eficaz. A mesma que nos faz desejar parir outro filho quando ainda nem os pontos levámos.

Fala e faz-se entender tão bem. Só começou a apontar com o dedo indicador há pouco mais de um mês. Tem amigos em todas as lojas que frequentamos no bairro. Pessoas favoritas de quem sabe e diz os nomes e repete-os vezes e vezes sem conta, a pedir-nos que o levemos até elas. Conhece as rotinas, os caminhos, as portas das lojas e do nosso prédio sem hesitação. Percebe tudo o que dizemos, sabe o que pode e não pode fazer. Faz o que não pode e vem confessar-se a dizer né né né. Também diz iá num tom tão holandês que chega a ser cómico. Sempre que vê passar um avião diz "avi" e recentemente descobriu a lua.
Dança. Canta. Finge que espirra. É loucamente apaixonado pelos avós. Não faz daquelas birras típicas (ainda) mas quando é contrariado é capaz de nos morder ou bater. Depois diz né né né.
Não sei o que seriam os momentos difíceis de não tivesse este livro.

Como precisávamos dum degrau para chegar à pia, comprámos um conjunto que já traz potinho e assento para a sanita. Deixámos o potinho aqui na sala, para ele já se ir familiarizando e sentando. Em vez disso, finge que cozinha - potinho debaixo do braço, colher a mexer vigorosamente, prova a comida imaginária e a delicia-se com huuuuuuuuuuums estridentes. E se olharmos duas vezes pergunta-nos se somos servidos.

Damos beijinhos à esquimó. Digo-lhe ao ouvido "amo-te tanto tanto tanto tanto" e peço-lhe que me diga também. Sussurra "titititi".

22 de abril de 2015

epifanias no parque

Quando olho para o meu filho a caminhar no parque e me vejo a orientá-lo, me ouço a dizer "vamos" mais vezes do que desejo e a impedi-lo de largar a correr relva fora, desviando-se do caminho, não consigo não sentir tristeza. Todos os dias desejo que seja adiado o dia em que o espírito selvagem do Diogo seja ferido, e enquanto isso sou eu quem já o vai domando.
Lá íamos, à volta do lago, ele a fazer pausas para apanhar algo do chão, ou mexer numa planta, ou cumprimentar alguém, ou se agachar e esfregar o chão de terra batida cheio de pedrinhas. Fica com as palmas cinzentas, apanha um grão que lá lhe saltou ao tacto e traz-mo. Deixar que se suje à vontade e meta as mãos na boca são tarefas fáceis, comparadas com conter o apressar quando na verdade não há pressa nenhuma, deixá-lo parar quantas vezes quiser. A minha intenção de o "treinar" no parque para que um dia possa andar no passeio sabendo que a estrada é perigosa até pode ser muito boa, mas o que se torna óbvio para mim é a minha ansiedade quase crónica, a necessidade de controlo, o impulso de o proteger e sobretudo a formatação que sofri ao longo desta minha vida, e que por mais que não queira, teimo em já impor ao meu bebé.

Lá estava ele, agachado, tão pequenino, tão frágil no meio da imensidão do parque. Olhei e contive o "vamos?", vi-o a ele e a um plátano centenário, e o meu bebé era feito do mesmo que tudo o resto. Tinha nele a mesma sabedoria centenária do simplesmente existir no momento presente, de tocar no chão e nas pedrinhas porque o chão e as pedrinhas estão ali, o caminho e o relvado formam uma mesma superfície sem limites, e o ir para casa ou ver os patos não existem ainda. Para ele tudo é possilidades, tudo é permitido até que eu lhe diga que não, tudo é limpo e puro até que eu lhe diga que é sujo, tudo é trepável até que eu o avise que pode cair. Parece que à medida que lhe vou roubando esta visão inocente e animal da energia que gere a Terra, transfiro para ele e preencho esses vazios com os meus medos, as minhas regras, os meus limites e limitações. E parece-me tudo tão cruel e injusto, porque na verdade ele é o meu professor, quando volta a agachar-se sem pressa para apanhar mais uma pedrinha.

18 de abril de 2015

doem-me as costas até aos pés

As palavras acumulam-se-me na garganta, e volta e meia transbordam em forma de post.

Tenho umas saudades de trabalhar que às vezes dá-me vontade de chorar. Trabalhar no sentido de ir para o trabalho, fazer cafés (as saudades que tenho de fazer flat whites e desenhar coraçõezinhos com a espuma do leite chegam a ser doentias), clientes e colegas com quem conversar sobre nada de muito profundo, ter horas marcadas e intervalos e metros à pinha para regressar a casa. Porque trabalhar assim parece férias, comparado com ser mãe a tempo inteiro. 
Há uns meses vi a minha vizinha de baixo sair para o trabalho uns quantos dias seguidos. Acho que ao terceiro dia senti inveja. Isto só faz sentido para quem tem filhos, imagino. Essa saudade da vida passada, dos tempos em que eu era só eu, tão mas tão livre que nem tinha noção do mundo de possibilidades que tinha nas mãos. Perguntem-me se queria voltar atrás, ou ter adiado o ter um filho, se me arrependo do que quer que seja e a resposta é não, não, não. Não há como imaginar a vida sem o Diogo. A vida é tão melhor com um filho que até o nosso passado parece mais feliz. Parece que as saudades me toldam a razão e só me lembro de coisas boas. As viagens com o Faneca. Vejo-me em esplanadas a tomar cafés, a comer azeitonas e a beber vinho, vejo fins de tarde rodeada de amigos e gargalhadas, e todos esses dias me parecem Verão. Tudo me parece morno e vejo-me com a minha prima no mar de Carreço a nadar, vejo-me deitada na areia a observar conchas tão pequenas que pareciam grãos de areia também... de cores que nunca imaginei. Cansaço? Sabia lá eu o que era cansaço. Frustração? Sabia lá eu. Não dormir bem uma noite? UMA NOITE? Ahahahhahahhahaha!

A minha vizinha um dia voltou do trabalho e encontrámo-nos lá em baixo, eu a tentar domar a minha cria, o carrinho, as bolachas, gorros, cachecóis, toalhitas e fraldas. Ela toda livre, toda só ela, chave de casa na mão, bolsa ao ombro, quando me diz "I'm expecting" e mostra-me o crachá "baby on board". E foi como se me tivesse dito que tinha ganho a lotaria. Melhor, que eu tinha ganho a lotaria! Arrepiei-me toda, agradeci-lhe tanto por me contar, vim para casa e fui buscar dois dos meus livros sobre gravidez e bebés, pus-lhes um grande laço vermelho. A vida da minha vizinha já podia ser boa, mas o melhor está para vir, não tenho dúvidas.

14 de março de 2015

chamam-lhes buskers

Ali num dos túneis junto ao rio Tamisa, se não é no da oxo tower é outro ao pé de Blackfriars, há um violinista talentoso mas muito zangado com a vida, que assim que alguém pára para o ouvir, pára de tocar. A primeira vez que parei, tão feliz de expor meu rico filho a tão belo som, o homem parou e olhou para nós. Retomou. Eu, inocente e um pouco parva, nem sequer percebi do que se tratava. Fui ao porta moedas e deparo-me com uma nota de 20 libras e umas moedinhas pretas. Virei costas para ir ao café da esquina e trocar a nota, e eis que o senhor pára de tocar outra vez e começa a praguejar aos berros na língua dele. Fascinante como não é preciso ser poliglota para perceber quando nos estão a chamar puta. Se não tivesse um filho pequeno e não tivesse imaginado o homem enlouquecido a bater-nos com o violino, ter-lhe-ia não só dado aquela moeda de uma libra (que dei), e agradecido (que agradeci), mas também perguntado se aqueles gritos eram comigo (e desejado que dias melhores lhe acontecessem). Quanta amargura, quanta raiva.
Isto para dizer que aqui no nosso bairro há um rapaz a tocar guitarra e a cantar à porta do supermercado que é talento em estado puro. Sempre que o vejo estaciono o carrinho a dois metros dele e o Diogo fica ali na primeira fila, hipnotizado. Tão humilde quanto tímido. Desfaz-se em sorrisos e já nos reconhece. Canta versões mas tem a própria banda com quem toca e canta músicas originais. Só desejo que o sucesso lhe chegue depressa, porque inocente e um pouco parva que sou, acredito com muita força que a sorte se faz com as nossas próprias mãos, e quem carrega boas energias e põe amor naquilo que faz (por mais adversas que sejam as condições), merece viver disso e prosperar em todas as direcções.

achado nos rascunhos 05/08/2014

Um dia vou olhar para trás e rir-me (não é que não me ria agora, mas vou rir-me com mais vontade) desta fase em que os meus dias eram passados com um bebé que quando não estava a rastejar pela sala, estava pendurado em mim, e que nos poucos minutos entre uma coisa e outra eu estaria a pintar móveis, vender livros, contactar lojas, ouvir nãos, ouvir talvezes e agarrar-me aos sins com a força da necessidade (essa força maior que a força de vontade, porque o que tem de ser tem muita força) de quem não tem alternativa. Há sempre alternativas, claro, mas no meu caso eu enlouqueceria se não fizesse (ou tentasse fazer) outra coisa para além de ser mãe. O que roça a loucura, porque ser mãe a tempo inteiro é trabalhar 24 horas por dia, mas é assim que eu sou e sinto e penso.
Voltou a acontecer. Sonhei que ganhava a lotaria e no meu sonho comprava aquela lojinha que ando a cobiçar há meses (que já foi um café vegan e por isso tem bom karma), estava a planear a decoração e já me via a vender os móveis, as ilustrações, os bolinhos caseiros, já me via com o Faneca a tratar de toda a parte administrativa e burocrática e sentia esta alegria profunda de me ver na minha lojinha, livre do medo de não fazer dinheiro porque afinal de contas tinha ganho a lotaria.

3 de março de 2015

um ano e meio



Um ano e meio de Diogo cá fora. Há dias sentia o coraçãozinho dele a bater acelerado e dizia-lhe que aquele coração já bate sem parar há mais de dois anos.
Não sei para onde foram as horas e os dias. Sei que todas as certezas que tinha antes de ter um filho cairam por terra, e chego a ter vergonha das coisas que já pensei e disse sobre bebés. A única certeza que tenho hoje é que cada casal deve fazer aquilo que funciona para si e para o seu bebé, o que os faz feliz. Tudo o resto que dizem os profissionais de saúde, os livros, os sites, os palpites bem intencionados de quem não faz parte deste trio, se não nos soa a certo, é pura e simplesmente ignorado.

Se pudesse voltar atrás no tempo e dar um conselho a mim própria antes de sequer engravidar seria, sem dúvida, que ouvisse o meu instinto sem hesitar. Ter-me-ia poupado muita angústia.

Temos um filho à espera de projectar e moldar nele todos os nossos ideais, e quando nos damos conta ele está é a agir como nós, a gesticular como nós, a falar como nós. Só que tudo é exagerado com requinte de caricatura, incluindo os nossos defeitos e tudo o que achámos omitir.

Um ano e meio e percebe tudo o que dizemos, em português e holandês. Estamos constantemente sob escuta. Adora animais, sobretudo cães. Gosta de pessoas em geral e do pai em particular, com quem joga às escondidas e às perseguições e com quem dá longos passeios pela casa de mão dada. Aspira o chão e pára para dar beijos no aspirador. Dá beijos em tudo, diz olá a objectos e pessoas e se o quisermos fazer feliz é só levá-lo à estação, ver passar uns quantos comboios e depois entrar num.
Ainda mama e desde que começou o martírio dos dentes acorda vezes sem conta durante a noite. Adora ajudar a fazer a comida, gosta de comer o que cozinhou tépido (não há comida de que não goste) e de sopa fria. Anda há mais de um mês mas ainda não corre. Faz-se entender muito bem com a sua linguagem gestual acompanhada de bás, pás, cãs e umas quantas palavras com mais de uma sílaba.
Nunca pára quieto.

Quanto a mim, nunca cheguei a sentir aquele amor maior e arrebatador, talvez porque já me sentia capaz de o amar assim, já o amava quando saiu de dentro de mim naquela piscina. O que me surpreende é onde esse amor me leva. Transforma-me e revolve-me as entranhas, abala até o que eu achava ser inabalável em mim. Os limites da paciência, da frustração e do cansaço esticam-se, rompem-se e redefinem-se todos os dias. Tantas coisas perderam a importância e tantas ficaram em pausa, para que eu seja hoje uma mãe a tempo inteiro e ilustradora nos minutos vagos.

Há dias o sol brilhou e entrou quente pelas janelas da sala. Eu imaginei-me imediatamente a tomar um café e ler um livro sentada no sofá, mas o que aqueles raios de sol revelaram é que não há superfície desta casa que não tenha pó, ou dedadas de comida, ou ambos. Dei comigo a praguejar enquanto limpava freneticamente o que podia e a rezar a todos os santinhos para que já que sou uma incompetente duma dona de casa, ao menos que seja boa mãe.



19 de novembro de 2014

24 de julho de 2014

dioguinho

Quase onze meses de vida. Onze mais nove meses duma existência tão pura, tão inocente. Vejo nitidamente porque é que nós, seres humanos, nascemos animais perfeitos e depois nos transformamos em gente. Projecto no meu filho aquilo que li nos livros, nos sites, aquilo que ouvi dizer, que me aconselharam. Tantas expectativas em cima dum serzinho que nem sabe o que é ser outro. Ele é ele próprio e vê o mundo somente (ainda) através da sua própria existência. Quase onze meses e quase seis dentes. Nada do que li ou ouvi me preparou para isto dos dentes, que só é comparável aos primeiros meses com um recém-nascido, em que se desejarmos poder tomar um banho descansadas e ainda lavar os nossos dentes (sem ser no banho) várias vezes por dia estamos a ser ambiciosas. Seis dentes. Ainda não anda. Ainda não gatinha. Ainda não se senta sozinho. Só duplicou o peso com que nasceu com mais de oito meses e começou a segurar bem a cabeça sozinho com cinco. Ainda não dorme a noite toda sozinho. Sempre que me perguntam o que é que ele já faz desta lista, apetece-me engoli-lo e voltar a tê-lo só meu, dentro de mim, onde tudo era perfeito. Ninguém se atreve a perguntar a uma grávida "Então o teu filho já tem pernas e braços? E dedos? E o coração bate?" porque se sabe que tudo vem a seu tempo, porque a natureza é muito maior que os livros e sites e conselhos e sobretudo é maior que os homens, e porque a uma grávida não se deve dizer indelicadezas.
Pois a uma mãe deve-se pensar duas, três, quatro vezes antes de questionar o desenvolvimento, o ritmo ou o que quer que seja do seu filho. Porque o filho nasceu mas continua a ser feito dela, um pedaço que dela saiu e que agora está cá fora a pulsar, vivo e exposto ao mundo, aos outros, aos olhos dos outros que querem, que teimam em moldá-lo.

Não engulo o meu filho. Digo simplesmente que não, ainda não. Tem uma vida inteira pela frente, para se sentar sozinho, andar e correr, cair sozinho. Levantar-se sozinho. Uma vida inteira para comer sozinho e sim, ele há-de largar as minhas mamas e eu hei-de morrer de saudades disso. Poderia dizer, para compensar, que já diz mamã e papa, que entende holandês e português e que faz um sem número de gracinhas que nos derretem. Sabe como nos arrancar uma gargalhada e o que mais me comove é que olha para todas as pessoas com quem se cruza nesta cidade (todas as culturas e raças, todos os feitios e idades, todos os extractos sociais) e demonstra por elas o mesmo interesse. Olha as pessoas nos olhos, profunda e demoradamente com uma tolerância e curiosidade típica de bicho selvagem que nunca foi ferido. Se o olhar e interesse forem retribuidos, sai-se com uma das suas gracinhas infalíveis.
Algures na cronologia do Diogo alguém vai conseguir fazer um comentário bem intencionado ou uma pergunta inocente que não passará pela minha censura e pela minha vontade de o engolir, e há-de ofender, há-de magoar o meu bebé. Um dia ele vai deixar de olhar, confiante de que é perfeito e único, nos olhos de toda a gente que com ele se cruzar. Resta-me fazer tudo o que sei para que esse dia nunca chegue, e continuar muito atenta a tudo o que o meu filho tem para me ensinar.

15 de junho de 2014

o que eu não sabia

Dizem que quando se tem um filho se descobre um amor maior. Que se ama um filho mais do que se imaginava ser capaz. Eu fiquei à espera disso. No entanto nunca apanhei a tal surpresa.
Veio antes o instinto, uma coisa tão esmagadora que me deixou irracional durante semanas. Incapaz de verbalizar, de escrever, de não chorar. Imaginar que alguma coisa de mal pudesse acontecer ao meu bebé, assim como ouvi-lo chorar por mais de um minuto, causava-me a sensação física e dolorosa de ter engolido um garrafão de ácido e sentir as minhas entranhas corroerem-se. Corroerem-me de dentro para fora. Quando vi o meu corpo deitar leite sempre que o meu filho chorava, ou pensava nele, ou já se tivessem passado três horas, apercebi-me de que sou um animal como os outros animais, sem metáforas. Um mamífero tão munido de instinto como de útero, de mamas, de leite. E que se eu sentia aquela angústia, aquele chamamento incessante e ensurdecedor que na minha opinião pouco tem a ver com amor, então muitas outras mães o sentem, sobretudo as mães chamadas de animais irracionais. Também eu irracional, senti no meu corpo a dor dos animais que exploramos. Passei a gravidez a comer queijo porque como a maioria das pessoas conseguia visualizar uma vaca feliz nos alpes suíços a ser ordenhada manualmente. De repente a indústria do queijo assombrava o meu dia-a-dia e era a história de terror mais cruel e retorcida de todas, porque eu participei dela durante mais de trinta anos com a minha ignorância, o meu corpo, a minha gula e o meu dinheiro. A minha hipocrisia.
Depois chegou o amor. E tal como eu estava à espera, apaixonei-me ainda mais pelo meu bebé, todos os dias mais um bocadinho, e todos os dias são melhores e todos os clichés sobre ter um filho fazem sentido. Amo o meu filho tal como imaginei, fascinada com cada feito, babada de orgulho, desfeita em sorrisos, toda eu colo e mimo e paciência.

O que eu não sabia é que esse amor transbordaria. Que o amor maior que a maternidade trouxe é o meu amor-próprio, para surpresa das surpresas. Que aquele estado de graça em que estive era só o começo e que entraria nesta casa um mestre espiritual de três quilos e meio, pronto para viver comigo vinte e quatro horas por dia e me dar lições a cada minuto. Todos os dias desejo gostar de mim como o Diogo gosta dele mesmo. Todos os dias admiro o entusiasmo e optimismo com que ele vê o mundo. Como se nada de mal pudesse acontecer, numa existência em que se é alegria e tolerância puras, em que se expressa o que se sente simples e honestamente. Todos os dias aspiro a cuidar da minha saúde e a olhar por mim como cuido e olho por ele. Gostava de viver para sempre, para poder continuar esta caminhada com vista privilegiada para o que é um amor que transborda e se espalha em todas as direcções, em que não sei onde acabo eu e começa o meu filho, o meu namorado, a nossa família e todos os que fazem parte da nossa vida.

15 de abril de 2014

de volta


Mais cem exemplares, numerados e assinados com amor e carinho. O preço é 12 euros, o que inclui o envio em correio azul nacional. Para comprar e para mais informações, aqui fica o endereço do costume: natachapintas@gmail.com.

Entretanto, o regresso às tintas compensou. Muito, muito obrigada por todos os comentários e apoio!
Já não me lembro há quantos anos não pegava na tralha com que me sinto mais à vontade. Pincéis, lixas, martelo e pregos, chave de fendas e parafusos, cola para madeira, fita crepe, verniz, a minha paleta... Esta sala transformou-se em oficina e cada minuto em que o Diogo não precisou de mim (agora com os dentes a caminho precisa de mim vinte e cinco horas por dia) foi passado ou a pensar na cómoda, ou a tratar da cómoda. E porque este é um bairro onde se vende móveis velhos a preços altos, dei corda aos sapatos e fiz-me às lojas. E mais uma vez sinto que a minha gratidão é sempre superada pela generosidade de quem me rodeia... na segunda loja não só recebi um sim imediato, como rasgados elogios e ainda ajuda para divulgar o meu trabalho. Decorem o nome Papagaio, porque é lá que o meu regresso às pinturas está a acontecer. Estou tão entusiasmada!