22 de setembro de 2015

em defesa dos não-veganos

Entrei para pedir um café e me sentar na esplanada enquanto o filhote dormia. No balcão havia amostras de brownies, aos pedacinhos, e eu pus uma na boca imediatamente. Só depois de engolir me passou pela cabeça que aquilo não teria só açúcar, que era o ingrediente terrível que eu me estaria a permitir ao fim de meses de restrição. Manteiga, ovos, tudo o que também não como há meses, mais por amor aos bichos que a mim própria, também ali estavam e isso nem me passou pela cabeça. Porque um brownie é um brownie. É chocolate. Um brownie indefeso em pedacinhos ali em cima do balcão, de graça, não pode esconder o rasto de sangue dos milhões de animais que morrem diariamente às nossas mãos e bocas. Ou pode?

Nesse momento arrependi-me um bocadinho dos anos em que fui uma vegetariana zangada, cheia de pedras na mão, cheia de razão. Mas a maioria das vezes em que compreendo o que os não-veg(etari)anos-que-também-gostam-de-animais passam não tem a ver com comida. Tem a ver com sentir. Aliás, com não sentir.

Se ando pela internet e vejo fotos de Lisboa faz-se-me um nó no estômago. Basta-me ver casas de cores pastel. Ou uma ruela com portas tipo Alfama. Saio da página, minimizo, faço o que for preciso para não ver. Não sentir. As saudades que sinto de Portugal são indizíveis. E se eu mas permitisse sentir, viveria a chorar e a inventar outras razões para voltarmos o mais depressa possível. Não me permito. Recalco-as para as profundezas da minha alma, onde o coração não sente. Ocupam, comprimidas, o espaço dum grão de areia, no meu cérebro caótico. Volta e meia uma lembrança faz-me tropeçar nelas, e é como se abrisse um armário gigante onde enfiei à bruta todo o meu amor pelo meu país, pela Lisboa que me adoptou, pela minha Alfama. Resvala tudo para cima de mim. Agora o nó é na garganta.
Fascinam-me estas coisas da mente humana. Estas coisas que descrevo por imagens porque sou pintora e que me inquietam porque já fui uma doente mental. Como é que a nossa mente é tão incrivelmente capaz de apagar o que nos causa desconforto? É aqui que quero chegar. Da mesma maneira que também eu já vi num bife apenas um bife, e não uma vaca (alguma vez eu comeria um dos meus animais favoritos?!), da mesma maneira que comi aquele pedacinho de brownie e não os ovos e manteiga, dessa mesma maneira que o que era comida e não podia ser outra coisa, hoje, as saudades são só uma palavra. Não as penso e não as quero sentir. Dessa mesma maneira que não quis sentir durante anos que os ovos e os lacticínios são tão maus ou piores que a carne e peixe. Recalquei e comprimi para aquele mesmo cantinho escuro do meu cérebro a visão daqueles animais e a informação, os factos, os vídeos disponíveis que rebentam pelas costuras da internet e que estão à distância de um só clique, para que qualquer pessoa que se quiser permitir ver, se permita também sentir.

Sempre que me passa pelos olhos uma imagem de Lisboa, toda céu azul e luz, lembro-me dos dias em que comia gelados e gelados eram só isso mesmo. Até que em vez de pensar duas vezes, senti.

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