11 de março de 2012

um ano. o tempo voa

Há um ano eu ainda não tinha emprego. Procurava diariamente e respondi a anúncios que somente o desespero justifica, de quando cada euro convertido em libra parece desaparecer, e cada libra desaparece ao fim de uma viagem de autocarro ou um café de merda. Uma libra e meia por um expresso, e não conseguir tomá-lo. Houve momentos em que a minha zona de conforto me parecia estar tão longe, mais propriamente na máquina da Delta que tínhamos na cozinha em Alfama.
Em Março, ao fim de quase dois meses, a terceira entrevista de emprego deu frutos. Comecei a trabalhar no dia 28.
Hoje sou kitchen leader. Há um mês vi pela primeira vez cairem-me mil libras limpas na conta bancária. Londres é a minha casa e a minha vida é vivida de mão dada com o meu melhor amigo e meu amor.
Na loja somos dez pessoas. Conseguimos dar-nos muito bem e apesar de todos os momentos lost in translation, sinto que me conhecem. Sabem muito bem o que significa, e preparam-se para o meu mau humor quando me ouvem um "tenho muita fome" no meio de um turno em que não há tempo sequer para beber água. O trabalho é duro. Fisicamente exigente e desgastante psicologicamente. Neste tipo de empresa só se safa quem tem muito bom humor e resistência. Os "fracos" desistem ao fim de quinze dias, porque há coisas que podem ser vistas como desumanas. Apesar de tudo, gosto do eat. Mas não é lá que me vejo daqui a um ano. Tento absorver tudo o que este emprego me tem proporcionado de bom, e desviar-me agilmente das coisas más que se me dirigem. O desperdício é uma coisa com a qual eu nunca estarei confortável... o desperdício e todos os recantos escuros e muito sujos que o capitalismo esconde.
Começo a sentir, quase um ano depois, que já aprendi tudo o que havia para aprender nesta empresa, e que subir de cargo só me embrenhará mais na teia hierárquica que tão bem a sustenta.

Um ano depois. Já tenho a tão importante experiência de trabalho no Reino Unido que a maioria dos postos de trabalho exige. Sinto-me em casa e sinto-me inquieta porque começo a perguntar-me demasiadas vezes o que se segue. E aqui as possibilidades são tantas.

25 de fevereiro de 2012

todos os dias

O despertador toca às 4h45. Há dias em que acordo pouco antes dele tocar, há dias em que não acredito que já está na hora, desejo desistir de tudo e a única coisa que parece fazer sentido na minha vida é voltar para a cama. Visto-me em frente ao aquecedor.
Saio de casa entre as 5h10 e as 5h13. Se sair mais tarde posso perder o autocarro, o que significa chegar à loja às 6h02. Normalmente chego às 5h43. Mesmo antes de atravessar a passadeira, dou um toque para o telefone da loja. O William está no escritório a pôr dinheiro nas caixas registadoras, vem de lá de baixo com duas ou três gavetas nas mãos, pousa-as no balcão e vem abrir-me a porta. Todos os dias me dá um sorrisinho, apesar do sono.
Ligo a vitrine quente. Sou a responsável pela comida quente na nossa loja. Faço um chá e vou para baixo. Entro na cozinha, ligo a música, ligo o forno a 190 graus, ligo a enorme panela de água quente onde aquecemos a papa de aveia, as sopas, o puré, o arroz, os caldos. Pego em três tabuleiros de levar ao forno. Tiro do congelador os croissants, os croissants de amêndoa, os croissants de chocolate, os folhados de canela, os folhados de nozes. Ponho-os no forno com cerca de dez baguetes. 19 minutos. Vou vestir o uniforme. Volto a vestir o casaco e o cachecol. Entro no frigorífico e rezo para que os sacos de papa de aveia estejam num dos cestos de cima. Todos os dias verifico o que foi entregue durante a madrugada. Pilhas de cestos de comida, pacotes, caixas. Menos de cinco graus no frigorífico. Onde está a papa. Porridge, porridge, porridge. Levanto e transfiro os cestos de um lado para o outro em busca do saco branco e do saco azul. Tudo é frio e húmido e pesado e eu já tenho músculos visíveis nos braços e nos abdominais graças a esta tortura diária. Todos os dias o meu colega que faz os cafés vai lá a baixo buscar leite e dá de caras comigo dentro do frigorífico. Natachinha, diz ele. Muitos me chamam Natachinha porque é assim que eu falo de mim na terceira pessoa.
Encontro a porra da papa e meto-a na ketle. Posso finalmente tirar o casaco e o cachecol. As minhas mãos cheiram a congelados (peixe). Lavo-as pela já segunda vez. Passo o dia a lavar as mãos. Vou ao escritório onde a lista da entrega já está na impressora à minha espera. Os folhados já estão cozidos. Por essa altura já chegou uma quarta pessoa que os leva para cima. O café abre às 6h30. Eu terei de voltar ao frigorífico, mas antes preparo o acompanhamento para a papa. Às 7h a papa tem de estar acima de 80 graus. Faço as porções. Um saco dá para 8 grandes e 8 pequenas. Há um cliente que todos os dias chega às sete para pegar no seu small plain porridge and a small skinny latte. Reutiliza o saco, e não precisa de colher. Gosto dele.
Todos os dias. De segunda a sexta, todos os dias.

12 de fevereiro de 2012

o escaravelho

Lembro-me de nas profundezas da depressão, um dia olhar para um escaravelho que estava a apanhar sol numa das plantas da minha mãe. Os dias de sol e as coisas bonitas são como ácido para quem está na escuridão da doença, porque multiplicam a dor e a culpa de não se conseguir gozá-los. Senti um sincero desejo de ser aquele escaravelho. De simplesmente existir, de não ter consciência e de apenas apanhar sol, numa folha verde. Depois disse à minha mãe "Algo está muito errado no meu mundo, quando sinto inveja dum escaravelho".
Um dia, para o meu próprio e único bem, perguntei-me por que não. E decidi ser escaravelho.
O que é que era tão importante, tão mais importante que o meu próprio bem-estar, a minha própria saúde, a minha própria vida? Tentei recordar-me de como tudo começou, onde é que eu estava a ir mesmo, antes de cair no poço fundo em que me via. Para me libertar e voar dali para fora, despi-me do pesado e pegajoso cobertor do socialmente correcto. Apercebi-me de que nenhum mal vem ao mundo se eu decidir ignorar todos os padrões pelos quais os outros (e eu própria) me medem e julgam. Simplesmente ser. Porque sim.

9 de fevereiro de 2012

ele estava a ver os simpsons

Soltou uma gargalhada. E depois outra. Estava sozinho na sala e eu estava na cozinha. Ainda não vivíamos juntos. Mas foi nesse dia que eu desejei viver com ele para o resto da minha vida.

24 de janeiro de 2012

note to self

Sorrir.
Dar beijos e abraços. Se não há família e melhores amigos por perto, há colegas de trabalho receptivos.
Fazer alguém rir.
Brincar e gargalhar.
Celebrar as mais pequenas coisas.
Tomar um bom pequeno almoço.
Passear e ver coisas.
Ouvir música.
A felicidade pode estar mais perto do que se imagina.

17 de janeiro de 2012

cream tea

Cream tea. Ou "a ignorância emagrece".
Ninguém viveu a sério até comer um scone carregado de natas coalhadas e compota de morango, acompanhado de chá. Eu comi o primeiro aqui, e desde então é ver-me fazê-los em casa e devorá-los às dúzias. Este país está a entranhar-se-me no sangue (as análises di-lo-iam, se acaso as fizesse). Até já prescindo do café, e tomo um chai com leite.
Se não fossem as escadas do trabalho e as trezentas vezes que as subo e desço diariamente, não sei... não sei não.

Acho que já estão cozidos. Adeus.

11 de janeiro de 2012

onze de janeiro de dois mil e doze

Choro baba e ranho de saudades da minha avó.

6 de janeiro de 2012

dia a dia

O despertador toca e eu não sou eu. Às 4h45 acorda uma parte de mim que é pessimista, que quer fazer birra de sono e de frio. Que quer demitir-se e que tem inveja do holandês que ainda vai dormir mais três horas. Às cinco da manhã sou branca como cal. Em 2011 este corpo não viu praia. As olheiras têm cor e relevo. A viagem de autocarro é tão rápida, quando se tem sono. Depois chego ao café vou directa para o frigorífico...

O resto de mim acorda por volta das nove. Todos os dias me sinto grata por trabalhar com pessoas amorosas, e por ninguém se chatear com as minhas palhaçadas. Todos os dias faço um esforço consciente por ser gentil com todas as pessoas com quem me cruzo.
O meu inglês é fraco. É incrível como noutro país, noutra língua, somos outras pessoas. Os meus colegas concordam comigo. Um colombiano, um francês, uma costa-riquenha, uma checa, uma polaca, um italiano, um espanhol. Enrolar os Rs, fazer soar os Hs. Distinguir beach de bitch, sheet de shit. Em Portugal i é i. Expresso-me mais do que nunca por imagens, por gestos, porque as palavras não me vêm à cabeça, muito menos à boca. O meu sotaque é outro, a minha voz, provavelmente também. Pareço ainda mais estúpida. Ainda assim, sinto que as pessoas gostam de mim. Tenho conhecido pessoas maravilhosas. Delicio-me com a disponibilidade que a maioria das pessoas tem para sorrir. Para falar descontraidamente com estranhos, para dizer uma graçola. Hipócritas ou não, dizem muitas muitas vezes desculpe, com licença, por favor, obrigada. Adoram filas. Nunca vi nada assim. O londrino adora uma fila e respeita-a religiosamente, e às suas regras intrínsecas, às variações, às filas duplas, à ordem de chegada. Nesta cidade, quem vê uma fila, mete-se nela (!). Diz a minha amiga Paz que podemos começar uma fila para lado nenhum, a qualquer momento, que com certeza alguém se vai meter nela sem saber para que é.
Há coisas de Portugal que se vêem muito melhor ao longe. Todos deveríamos experimentar sair de casa, de país, de língua. Para depois voltar, ou não. Mas para ver melhor. Para dar o devido valor às coisas.
Sou muito feliz em Londres.

6 de dezembro de 2011

o que eu gosto de mim

Quando penso nas coisas que já fiz a mim mesma, e que permiti que me fizessem. Quando penso no lugar escuro em que já estive e da força que foi preciso para me reerguer e proteger. Quando penso na falta de esperança. E no optimismo que um dia quase se me sumiu. Tudo aquilo de que precisei para aprender que o primeiro item na minha lista, a coisa mais preciosa que tenho, sou eu mesma. A minha mente, a minha alma, o meu ser. O meu corpo e a minha saúde. Nada se compara à riqueza de simplesmente ser. De decidir livremente e sem medo de julgamentos, o que fazer para ser feliz. Sinto um profundo orgulho do que sou hoje. Todos os dias me esforço por ser gentil e tolerante para todos aqueles com que me cruzo, mas sobretudo e sem hesitação, para comigo mesma.

7 de junho de 2011

rotina

Eight. To. Oxford Circus.

globe road
bethnal green station
barnet grove
brick lane
shoreditch high street station
primrose street (alight here for old spitalfields market)
liverpool street
poultry bank station
bread street
saint paul's station
city thameslink station
holborn circus
holborn circus fetter lane
chancery lane station

Um dia vou saber de cor todas as paragens que o meu autocarro faz. O oito. Trabalho há dois meses e meio numa das muitas lojas do Eat. A 113ª, para ser mais precisa. Um negócio milionário ao qual ainda me estou a adaptar. Onde não há tempo para reciclar a maior parte do lixo, onde o desperdício de comida é assustador, e ainda assim compensa. Mas onde a minha boa disposição e energia são valorizadas desde o primeiro dia, o fraco inglês perdoado, a palhaçada e o tom de voz alto incentivados. Não me posso queixar... adoro. Divirto-me todos os dias. Fui convidada a subir de cargo ao fim de um mês e meio, o que me deixou tão chocada quanto orgulhosa. Vou ser trainer, ao que parece.

Os clientes são incrivelmente simpáticos e muito bem educados. Pouco me importa se há cinismo nos constantes yes please, thank you very much, cheers! E como sorriem! Sorriem, riem, chegam a gargalhar. Talvez a maioria dos portugueses nunca se tenha apercebido de como somos sisudos, até se ver atrás de um balcão a encarar clientes. Depois há o sentido de humor britânico que se pode observar apenas de vez em quando, pois a maioria das pessoas nesta cidade é estrangeira. Pode-se apontar muitos defeitos aos londrinos, mas nunca vi pessoas tão tolerantes em relação à imigração. No nosso café apenas um dos dez funcionários é inglês.

Todos os funcionários são treinados para fazer tudo. Sobreviver ao stress, reagir depressa. Expor artigos, preparar iogurtes, breakfast muffins, cozer pão, bolos e tartes, fazer sanduiches, embalar sanduiches, etiquetar sanduiches a uma velocidade desumana. Desinfectar tudo. Varrer, lavar, esfregar. Restock. First in first out. Pôr sopa a fazer, carregar a sopa para a loja, servir sopa. Gritar hot soup! Verificar a temperatura de tudo o que é alimento. Etiquetar embalagens, operar a caixa registadora, tratar cada cliente como se fosse o único, dar trocos em libras. Fazer cafés. Todos os tipos de cafés, e estamos numa terrinha em que quem bebe espresso só pode ser italiano, espanhol, francês ou (obviamente) português. Aqui bebe-se muito leite (gordo). E chá, de manhã até à noite.

Às vezes tenho saudades de pintar. Especialmente quando vou a museus. Mas é muito bom ser bom noutra coisa, tentar outra coisa e ser-se bem sucedido. Arejar os neurónios, não pressionar a criatividade, não depender da criatividade para pagar as contas, não me preocupar (tanto) com as contas. Apanhar o oito, pensar em inglês, chegar a casa e ter dois amores comigo. O loiro e a morena. Uma família disfuncional na ala Este de Londres, entre muitos homens de turbante, mulheres de burca, alguns esquilos, corvos e a raposa que eu vejo todos os dias às cinco e meia da manhã, no parque da biblioteca.


30 de maio de 2011

Acredito cada vez mais que o que nos define enquanto individuos não requer esforço algum. Não é preciso contar anos de vida, dinheiro, conquistas, memórias. Não é preciso sequer autoconsciência.
A minha avó está a perder a memória. O que começou por ser engraçado, agora é assustador para ela e para nós. O que ela foi, o que ela conquistou, a sua vida e memórias vão-se esfumando. A minha avó desaparece em si própria. Faço-lhe perguntas sobre histórias que ela própria me contou e vejo-a pensar, fuçar no meio do pó da sua mente, angustiada e confusa, até encontrar a resposta.
No dia em que cheguei a Londres com a vida resumida a vinte quilos de mala e me vi numa multidão de 10 milhões de habitantes, comecei a pensar diariamente no que me define. O que é que me define, o que é que me distingue dos milhares de pessoas que também todos os dias chegam aqui com vinte quilos de vida numa mala. Quando retirada do contexto habitual, das minhas pessoas, dos meus objectos, só eu e a minha mente, fico a sós comigo mesma e observo-me com uma nitidez impressionante. Apercebo-me que sou um emaranhado de todas as marcas que me foram feitas por outras pessoas. Sou um emaranhado de gente. Surpreendentemente não me vejo a mim, vejo todos os que por mim passaram e em mim vivem. Sei hoje que a minha avó não é a velhinha confusa que fala comigo no Skype e pergunta a cada minuto se eu estou em Londres. Todos os dias. Todos os dias sou a minha avó. Tudo o que ela já nem se lembra que foi surge em mim em gestos e em expressões que teimosamente vêm ao de cima e dos quais só me apercebo quando já é tarde. E encho-me de amor e vida e esperança, porque sei que a minha avó nunca vai morrer. Está mais viva que nunca, à medida que eu envelheço.
Não sou as minhas convicções, as minhas ideias, os meus projectos, muito menos sou o que gostaria de ser. Sou o que faço aos outros, o que digo aos outros, o que marco de bom e de mau nas minhas pessoas, nas pessoas com quem contacto. Resta-me esperar até me ver definida.


25 de março de 2011

o blog dramático da pintora alérgica a tinta

Londres. Dissemos a nós próprios. Londres, está decidido. Pegámos no recheio da casa, vendêmo-lo, emprestámo-lo, demo-lo. Uma mala de vinte de quilos para cada e voar para Londres, sobreviver em Londres, viver Londres. Porque sim.
Nem toda a gente é abençoada como eu sou, e eu devia lembrar-me disto ainda mais vezes, e agradecer. Não só porque tenho amigos e família que me dizem vai, pais moídos de saudades que ainda assim se oferecem para patrocinar a minha aventura, um namorado que me dá sempre a mão independentemente dos meus delírios, e que todos, mas todos os dias me embala com as suas gargalhadas. Mas porque ainda me restam forças e egoísmo suficiente para perseguir os meus sonhos.
Podia ser em Portugal, em Lisboa, em Viana? Provavelmente. Mas mais provável ainda seria eu ter continuado inerte, sufocada pelas possibilidades, pelas muitas ideias, pelos poucos gestos, pelas perguntas (meu deus se eu parasse de fazer perguntas por um momento), pela incerteza e pelo medo. Haja pachorra para os dramas da vida. Ainda estou para me convencer de que a minha capacidade de adaptação às adversidades é uma qualidade.

Que bom é ter um cérebro. E um corpo saudável que responde, que reage. E que bom é ainda ter energia e juventude para me mexer, para me esforçar e para aprender tanto quanto preciso, enquanto existo. A qualquer momento tudo pode evaporar-se.

Londres é o meu novo amor. E ainda estou na fase do êxtase.

6 de dezembro de 2010

olhoooooo'tocolante!

autocolantes blog 1
O tempo e' de crise e se ha coisa em que as pessoas sabiamente comecam por poupar (ou cortar radicalmente) e' na decoracao do lar. E e' nesse momento que os decoradores em geral e as pintoras de paredes em particular comecam a ouvir a crise a bater-lhes 'a porta.

autocolantes parede

Por isso, queridas pessoas, aqui esta' uma versao muito mais acessivel (mas ainda assim no tamanho original e mesmissimas cores fofas) dos meus bonecos primaveris! Um conjunto de autocolantes que aderem 'a maioria dos suportes - nao so paredes! - e que visualmente causam o mesmo efeito. Estou muito contente com o resultado. Experimentei estas flores na parede (ultra rugosa) do escritorio de ca de casa so para fotografar. Coisa mai linda...

Estao a venda aqui.

1 de dezembro de 2010

o senhor cego do metro

Todos os dias, por volta das 8h da manha, ele entra na mesma estacao de metro que eu. Vejo-o todos os dias. Ouco-o todos os dias com a mesma ladainha. Olho para a janela e vejo o reflexo dele a passar entre as pessoas. Leva uma mochila as costas e parece-me um menino. Como e' que uma pessoa cega escolhe a roupa? Sera que ele sabe - que alguem lhe disse - de que cor e' a mochila dele?
O senhor cego da linha verde pede, sem parar. Troca de carruagem. Continua. Faca chuva ou sol, la esta ele. No metro vazio dos feriados ou 'a pinha, em hora de ponta. Nao tem uma mao e e' com esse mesmo braco que ele segura o copinho das esmolas. Uma vez observei como as pessoas se afastam dele na plataforma, mesmo as que estao sentadas e em quem ele inevitavelmente tocaria com a bengala (um cabo de vassoura) ao passar. Levantam-se, ele passa pelo banco vazio, e voltam a sentar-se. Parece um jogo. A cabra cega mais cruel de sempre, em que o cego nunca desvendara' os olhos e, ao passar por tanta gente que se desvia, parece estar sozinho na estacao do Martim Moniz.

Ouco-o a repetir "O deficiente agradece a quem possa auxiliar..." e so penso meu deus, se me cansa tanto ouvi-lo durante um minuto (e sinto que o meu cerebro mirra nesse interminavel minuto em que ele percorre a carruagem) imagino o que e' dize-lo e ouvi-lo o dia todo. Como e' que ele nao desiste? Como e' que ele esta la todos os dias? Sera que houve um dia em que se meteu na cama a comer, como eu faco? E eu tenho as duas maos e os dois olhos. Escolho a minha roupa na loja, no armario. Escolho o meu lugar no metro. Mas nao tenho a forca de vontade que ele tem, a concentracao e o empenho em alcancar um objectivo a que me proponha.

Ja ha mais de uma semana que nao faco um desenho. Sinto-me culpada por isso. E ainda mais por, em vez de desenhar, me apetecer meter na cama a comer.

13 de novembro de 2010

pediu um copo de leite e uma torrada

Esperou e desesperou pela torrada, porque a tostadeira do cafe onde eu trabalho deixa os mais calmos impacientes. Depois disse "Tire-me um cafe por favor, menina." e ao pagar, no mesmo tom serio e educado, disse-me "Posso dizer-lhe uma coisa? Nao me leva a mal?" e eu logo "Oh meu deus, sim." Leite azedo? Torrada horrivel? Cafe caro? Tchan tchan tchaaaaan...

"A menina tem um sorriso maravilhoso. Parece que esta sempre feliz, sempre a rir. Tem um sorriso maravilhoso. Maravilhoso."

25 de outubro de 2010

mijn jongen

Tu, coisinha constipada que ressona no sofa. Nao revires os olhos quando leres isto. Ik hou van jou.

23 de setembro de 2010

as capas da revista happy deprimem-me

Aquelas mulheres de 2 metros de altura com pernas de alicate, ombros para dentro, caras de absoluto tedio e, a coroa-las, as letras garrafais: HAPPY. E ainda bem que esta escrito que e' para a gente gorda mas feliz entender. Imagino a sessao fotografica. Encolhe a barriga, esses bracinhos mais ao pendurao, verga-te so um bocadinho mais, encolhe encolhe encolhe... ja esta!

E' por isso que eu vejo a vocalista dos The Gossip toda nua numa capa de revista e deliro. Ela faz por mim e por todas as mulheres reais (mais ou menos felizes) muito, mas muito mais que qualquer revista dirigida a gajas modernas. Muito, mas muito mais que qualquer ideal de beleza feminia, numa infeliz capa da Happy.

26 de julho de 2010

como ousais duvidar de minha palavra?

Para quem ainda não acredita que eu participei no SYTYCD, aqui fica a minha mais recente actuação:



E caso o video não seja suficiente, é favor perguntar a quem me conhece se não é verdade que quando eu não estou a pintar ou a tirar cafés, estou a fazer três piruetas seguidinhas.
E sim, sou mulata!

22 de julho de 2010

se esta rua fosse minha

No proximo Sabado, a partir das 14h, estarei com a Helena a divulgar o nosso muito querido projecto: Desenhar Sorrisos. Aparecam faz favor!

a minha vida e as voltas que a vida da

Estou em Alfama. O meu amor nao e' portugues mas creio que me entende e me ve melhor assim. Sem acentos e sem cedilhas, como o teclado do seu computador. Compreende-me melhor que milhoes de portugueses.

Em Alfama as pessoas falam alto. E dizem palavroes. Escusado sera dizer que me sinto em casa.
Alfama nao e' a Lisboa por onde eu entrei. Subo de electrico, aos trambolhoes. Digo bom dia aos vizinhos. Ha bebedos. E caes e gatos. E muitos turistas.

Sou das poucas pessoas que gostam de pombos.

O ceu de Lisboa tem qualquer coisa. Nao entendo o que tem de tao diferente de Viana que faz com que as nuvens se formem a milhas do chao. Isso da-me a estranha sensacao de que o ceu nunca esteve tao alto.
A estacao de Santa Apolonia e' azul bebe'. Dum azul bebe' tao bebe' que eu acho que foi um acto de coragem mandar pinta-la daquela cor. E' linda. E tem um pingo doce que so fecha as 23h.

Um dia eu ia no carro com a minha prima, decidida a tornar-me mais ilustradora e menos pintora de quartos. Tive um pequeno ataque de ansiedade e choro quando vi que tinha de tomar decisoes e passar ao ataque. Passar ao ataque, concluimos, implicava arranjar um trabalho qualquer em part-time. De manha. Qualquer coisa que nao me exigisse esforco nenhum e do qual eu gostasse, que e' para depois eu chegar a casa e ser ilustradora durante o resto do dia. Assim fizemos.

Trabalho num cafezinho amoroso. Um cafe sossegado onde a coisa mais dificil que tenho de fazer e' servir bebidas e chegar com elas 'as mesas sem entornar nada. De resto, exploro os meus talentos: dar de comer a quem tem fome, conversar e rir. Sonho com um cafezinho meu onde havera apenas sobremesas, cafe e sumos. Nunca pensei que dar de comer e beber a pessoas (fora de casa) me fizesse sentir tao feliz.
Os clientes falam baixo. Pedem italianas, cafes sem inicio e cupinhos de agua. Sussuram os pedidos, o que faz de mim a funcionaria surda do estabelecimento. A maioria e' muito gentil. Diz "ola como esta?", "por favor" e "obrigado". Olham-me nos olhos e sorriem. Ha dias uma senhora fez-me uma festinha no braco.

No proximo Sabado vou estar em Viana. A divulgar este projecto.