26 de fevereiro de 2007

deficiente

do Lat. deficiente
adj. 2 gén.,
falho;
imperfeito;
insuficiente.

Trabalho actualmente com duas crianças deficientes (duas e meia, a terceira tem um problema não-assumido pela família, então não se sabe se é autismo, se é deficiência mental, se é não sei o quê). A primeira criança diferente com quem trabalhei tinha Síndrome do Alcoolismo Fetal. Desde aí que os trato como crianças perfeitamente normais, apenas mais novas do que a data de nascimento indica. Quanto mais os conheço, mais gosto deles. Ser criança durante mais tempo que a maioria, não me parece uma desvantagem. Falar mal e ter os olhos tortos, também não, principalmente se se arranjar modos de expressão alternativos. Sei que a maioria das pessoas não pensa assim. Ser diferente é muito duro e ter alguém diferente por perto, pior ainda. O inferno são os outros.
O Duarte tem Síndrome de Down. Não fala, talvez porque nasceu num meio que o considera um caso perdido. Mas percebe tudo. Tem um sentido de humor fantástico e é uma ternura. Infelizmente tenho-o no meio de outras tantas crianças que me sugam toda a atenção e energia. Mas orgulho-me tanto dos seus progressos! Quando fez a pintura simétrica (dobrar a folha e ver o que acontece) tornou-se um ás do pincel e desatou a falar num dialecto que me passou ao lado.
Uma vez dei-lhes caramelos de fruta e o Duarte teve direito a um e a assistência técnica: enquanto mastigava eu amparava a baba, que saía em bica. Estava tão deliciado, tão feliz. Os olhinhos longe e as mãos sujas a querer mexer no que tinha na boca. Na sala de aula ninguém estava preocupado com a baba dele e o Zé até me foi buscar mais papel higiénico. Nesse momento eu desejei que o Mundo fosse feito de gente igual a estas crianças que, apenas a 15 km da chamada civilização, não sabem o que são umas All Star nem imaginam o que é o cromossoma 21, mas sabem o que é tolerância e dão muito valor ao afecto.
O Duarte não gosta de estar ao pé dos outros meninos. Na primeira aula enfiou-se debaixo da mesa e não houve quem o tirasse de lá. Entretanto passou para a minha mesa, onde faz tudo para me distrair e aproveita para tentar apalpar-me e levantar-me a saia (a cara dele quando me vê de saia, não há palavras para descrever...). Há pouco tempo decidi levá-lo ao quadro, depois de todos os outros terem ido. E foi, comigo. E preencheu meio coração a giz, com tanta vontade, tanto afinco e concentração!... E batemos-lhe palmas como a todos os outros.

Deficiente. Que palavra infeliz para se tornar substantivo.

5 comentários:

  1. Anónimo15:25

    Os meus avós eram primos directos. Tiveram 6 filhos e um nasceu deficiente.
    Sim, daqueles que têm aparência estranha e, às vezes, dizem coisas um tanto descabidas.
    Tenho pena que os meus avós não tenham tido conhecimento e dinheiro suficientes para lhe assegurar uma educação mais estimulante. Tenho ainda mais pena de com 11/12 anos ter sentido vergonha dele.

    Hoje, aquilo que realmente me irrita é quando os meus pais tomam o meu tio por estúpido. E quando lhes tento explicar que é um ser humano que está à frente deles e não um asno, eles respondem: "Lá vem ela com a mania que é enfermeira... "

    Um beijinho

    (Gostei particulamente deste tema)

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  2. Que bom foi ler este post!

    Nat,
    Na maternidade, há quinze dias, nasceu um bebé com Trissomia 21. A mãe fez todos os exames, excepto a amniocentese, nada indiciava que fosse necessária.
    Como podes imaginar foi um choque para o casal mas, doeu-me muito ouvir a mãe dizer:

    - Como é que quer que eu esteja? Olhe para o meu filho, não vê que é deficiente!?!?

    Fiquei tão triste. Principalmente, por temer pelo futuro desta criança. Quero acreditar que os pais vão dar a volta por cima, vão amar muito este filho e que lhe vão proporcionar todas as oportunidades.

    Ele era tão bonito, mesmo!

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  3. Anónimo10:22

    Estou toda arrepiada.
    Que sensibilidade...
    Eu já vi exemplos de crianças diferentes em meio positivo, felizes e encantadoras e o contrário... em ambientes negativos, podem ser encantadoras (pois concentram as energias em outros aspectos e são maravilhosas), mas com olhar perdidamente triste ou indiferente.
    Que aprendamos com as crianças que estão mais próximas da VERDADE!

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  4. Anónimo16:35

    Diferentes somos todos nós, em relação aos outros, ou não? Ser diferente é bom e enriquece e a alteridade transforma o "eu" e o "outro" no "nós"... :)

    Tens muita sorte de poder trabalhar com meninos e meninas e eles têm sorte de te ter a ti, concerteza !

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  5. Anónimo00:14

    Fiquei a admirar-te ainda mais ao ler este post. Sabes, eu já era médica (pelo menos já era licenciada) qd me apercebi de algumas coisas q aqui dizes, e foi longe, mais propriamente em Cabo Verde. Como explicar no meio da ilha do Fogo a uma família com uma filha surda-muda de 5 anos que ela é inteligentíssima, pois acabou de nos arrumar uma pasta com uma organização invejável? Como ultrapassar a angústia e a vontade de a trazer connosco, pois sabemos que naquele meio não tem qq hipótese de se desenvolver mais?

    Bj gde,

    Ana Montalvão

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