30 de maio de 2011

Acredito cada vez mais que o que nos define enquanto individuos não requer esforço algum. Não é preciso contar anos de vida, dinheiro, conquistas, memórias. Não é preciso sequer autoconsciência.
A minha avó está a perder a memória. O que começou por ser engraçado, agora é assustador para ela e para nós. O que ela foi, o que ela conquistou, a sua vida e memórias vão-se esfumando. A minha avó desaparece em si própria. Faço-lhe perguntas sobre histórias que ela própria me contou e vejo-a pensar, fuçar no meio do pó da sua mente, angustiada e confusa, até encontrar a resposta.
No dia em que cheguei a Londres com a vida resumida a vinte quilos de mala e me vi numa multidão de 10 milhões de habitantes, comecei a pensar diariamente no que me define. O que é que me define, o que é que me distingue dos milhares de pessoas que também todos os dias chegam aqui com vinte quilos de vida numa mala. Quando retirada do contexto habitual, das minhas pessoas, dos meus objectos, só eu e a minha mente, fico a sós comigo mesma e observo-me com uma nitidez impressionante. Apercebo-me que sou um emaranhado de todas as marcas que me foram feitas por outras pessoas. Sou um emaranhado de gente. Surpreendentemente não me vejo a mim, vejo todos os que por mim passaram e em mim vivem. Sei hoje que a minha avó não é a velhinha confusa que fala comigo no Skype e pergunta a cada minuto se eu estou em Londres. Todos os dias. Todos os dias sou a minha avó. Tudo o que ela já nem se lembra que foi surge em mim em gestos e em expressões que teimosamente vêm ao de cima e dos quais só me apercebo quando já é tarde. E encho-me de amor e vida e esperança, porque sei que a minha avó nunca vai morrer. Está mais viva que nunca, à medida que eu envelheço.
Não sou as minhas convicções, as minhas ideias, os meus projectos, muito menos sou o que gostaria de ser. Sou o que faço aos outros, o que digo aos outros, o que marco de bom e de mau nas minhas pessoas, nas pessoas com quem contacto. Resta-me esperar até me ver definida.


9 comentários:

Anónimo disse...

espero tb ainda viver em ti.....Uma beijoca goda para ti e para a Bibinhas. ;)

Anónimo disse...

Olá,já estava com saudades.Beijinhos e tudo de bom.
Paula, mãe do Martim

Anónimo disse...

Já tinha saudades, embora me tenhas deixado a chorar... Beijo grande Nat e que tudo corra bem :)

sara aires disse...

Linda!!!! "carago"!

Lulu disse...

Querida Nat,

Não pude deixar de me emocionar como o que vc escreveu. Por vários motivos, inclusive por ter o privilégio de conhecer a linda Bibinhas. O que mais me comoveu foi me rever em ti, há quase duas décadas atrás, quando foi a minha viagem, a minha ruptura que ao mesmo tempo foi o encontro de mim mesma. Encontrei em mim, que no meio da multidão achava que era UMA, uma MULTIDÃO! Foi essa a conclusão que cheguei: quando nós saímos, passamos a ser uma multidão. Senti isso por perceber as minhas referências (assim como vc fez agora) e por me ver, no olhar do outro (de outro país/cultura), como a representação de 140 milhões de pessoas. Não deve existir fronteiras mesmo, somos uma pseudo-pele.
Beijo no seu coração! Te adoro, manamana

Unknown disse...

obrigado*

Mary Flower disse...

Querida,

Embora não nos conheçamos, te acompanho há tempos por aqui... moro no Brasil e tenho também um blog, como tu... Tua angústia é universal, como são as perguntas perdidas na mente da avó... meu pai vive também esse apagar de luzes na memória, é na areia movediça diária que nos vemos refletindo sobre nós mesmos... do que será que nos lembraremos, como os outros lembrarão de nós...
Admiro tua franqueza e coragem e sei que tua artista interior não tardará a achar caminho, madura, mas menos sisuda... carinho!

sucast disse...

tão verdade o que escreves-te e tão lindo, obrigada.

Joana banhudo disse...

Olá! sempre adorei este blog e todas as histórias que nele surgem com uma simplicidade e uma clareza magnificas. Adoro ler as suas palavras, gostava de me conseguir expessar assim na escrita.
A minha mãe faleceu faz pouco mais de um mês e estas palavras ajudaram-me a ver as coisas de uma maneira diferente, apesar de passarmos por várias fases no luto, cada vez sinto mais a falta dela, em pequenos gestos, pequenas palavras, pequenas atenções e grandes ajudas principalmente com o meu filho Simão, e esta forma que tem de ver a sua avó em si ajudou-me a pensar o mesmo, e a sentir a minha mãe ainda mais próxima de mim.
Obrigada pelas suas palavras
JoanaBanhudo